Fernando Lafaiete 27/01/2018Memórias do Cárcere: Relatos cruéis do autor que sentiu na pele a força da crueldade humana!
O que dizer de Memórias do Cárcere? Como avaliar as experiências repugnantes de vida as quais o autor passou ao ser preso? - Graciliano Ramos é o autor do aclamado Vidas Secas, o romance vencedor do prêmio William Faulkner como livro representativo da literatura contemporânea brasileira em 1962. O autor foi preso em meados de 1936 após a intentona comunista (também conhecida como Revolta de 35) que foi uma tentativa contra o governo de Getúlio Vargas.
Nos relatos aqui apresentados, o autor afirma ter sido preso sem saber exatamente a razão. Ao questionar seus algozes, a resposta que recebia era: Você é comunista. - O problema? O autor não se considerava comunista e nunca tinha feito nada contra o governo. Ramos nunca foi acusado formalmente e nunca teve direito a defesa. Foi preso e chegou a ser tratado de maneira desumana. As situações expostas pelo autor em questão, são difíceis de serem digeridas. É tudo muito bem escrito, muitas vezes poético e com muitos simbolismos. Não se dá para esperar menos do que isso de um dos mestres da nossa literatura. Mas o livro também cansa, se torna arrastado em vários momentos e chega a ficar maçante em um nível que foi complicado passar pelas páginas.
Memórias do Cárcere tem alguns aspectos bastantes semelhantes com a obra-prima O Processo do gênio Fraz Kafka. Ambos os clássicos retratam e criticam um sistema burocrático corrupto onde pessoas são presas sem nenhuma justificativa palpável. Ambos os protagonistas questionam e recebem respostas vazias e sem sentido que só aumentam ainda mais a revolta tantos dos personagens centrais quanto de nós leitores. O autor vai desenvolvendo um ódio pelo capitalismo não por ser comunista, mas sim por ser este o sistema econômico que o julga e o condena sem lhe dar a chance de provar sua inocência.
"...Se o capitalismo fosse um bruto, eu o toleraria. Aflige-me é perceber nele uma inteligência. Uma inteligência safada que aluga outras inteligências canalhas. [...] Não é o fato de ser oprimido (que me atormenta). É saber que a opressão erigiu em sistema."
Graciliano Ramos vai narrando passo a passo todas as situações as quais o atormentaram. Passou fome, comeu comida estragada, viu colegas serem estuprados, foi ameaçado por outros presos e em nenhum momento teve a chance de se defender ou de defender outrem. Ele reforça a todo momento que sentia o cheiro podre da comida e que em uma ocasião chegou a detectar fezes de ratos misturados aos alimentos que lhes eram servidos. Como agir em uma situação como essa? - A resposta? Comer ou morrer de fome. E se comer, rezar para não passar mal e morrer.
"Em redor de mim tudo se consumira, e obstinava-me a chupar o cigarro, olhando a infame ração. Na farinha escura havia excrementos de rato. Apesar da náusea, parecia-me necessário comer..."
Muitos sofreram, muitos morreram e Graciliano lutou pela sobrevivência. O autor também relata o momento em que percebeu que na falta de mulheres, homens se relacionavam com outro homens na intenção de se saciarem sexualmente. O autor apresenta opiniões muitas vezes homofóbicas que me desagradaram em um nível que me fizeram pegar um pouco de implicância do autor nesses raros momentos. Tais relatos mostram a dúvida do autor em relação a tudo aquilo que ele estava presenciando.
"Penso assim, tento compreendê-los - e não consigo reprimir o nojo que me inspiram, forte demais. Isso me deixa apreensivo. Seria um nojo natural ou imposto? Quem sabe se ele não foi criado artificialmente, com o fim de preservar o homem social, obrigá-lo a fugir de si mesmo."
Não me foi uma leitura fácil. Foi uma experiência penosa, gratificante, reflexiva e maçante. Tudo isso ao mesmo tempo. Esse livro foi o responsável por me deixar de ressaca e confesso que me forcei a lê-lo em alguns (vários) momentos. Mas ainda assim, afirmo que é uma obra de valor inestimável. Não digo isso apenas por ser um clássico, mas principalmente por ser uma obra que retrata uma história real e necessária. Além das situações que citei, o autor apresenta muitas outras que são revoltantes.
Terminei a leitura exausto mentalmente e a jornada que percorri foi mais do que penosa, mas que valeu a pena. Ainda acho Vidas Secas muito superior, mas Memórias do Cárcere é um livro que deve ser lido e deve ser lido principalmente por quem tem empatia. Se você é uma pessoa quase nula desse sentimento ou é uma daquelas que acha que a solução para os problemas do nosso país é a volta de um sistema como a Ditadura Militar, acredito que este livro não te apresentará algo de muito valor.
É um livro rico em sentimentos, cheio de reflexões sobre a psicologia humana e que prova que o passado deve continuar sendo estudado para que não repitamos os absurdos que tanto propagaram em um época onde me parece que tudo era permitido (no quesito injustiças). Como disse o autor em uma das passagens que citei: O mais revoltante é saber que a crueldade humana retratada era respaldada por um sistema que deveria protegê-los. Um sistema falho que ainda é governado por incompetentes que mais prezam seus status políticos do que o bem maior que deveria ser a prioridade governamental. Só rezo para que as situações expostas por Graciliano Ramos nunca voltem a acontecer. Não dá para mudar o passado, mas podemos moldar o futuro que nos espera. Que assim seja, assim será... só depende de nós e de mais ninguém!