Eduardo 30/05/2020
Eis o porquê de o nordestino ser tão discriminado pelo resto do país até hoje. É porque o temem.
"Fechemos este livro.
Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a história, resistiu até ao esgotamento completo. Expugnado palmo a palmo, na precisão integral do termo, caiu no dia 5, ao entardecer, quando caíram os seus últimos defensores, que todos morreram. Eram quatro apenas: um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente 5 mil soldados."
Aquele que não conhece o Nordeste e suas gentes, leia este livro. É o testemunho eloquente do porquê de um povo causar tanto pavor e pânico no restante do Brasil à simples menção do seu nome, especialmente no Sul e Sudeste e Distrito Federal. Porque o que é o preconceito? é o medo do outro. Porque quem discrimina o faz porque teme o outro. E por isso o povo do Sul, Sudeste e Distrito Federal discriminam tão barbaramente o nordestino.
O livro fala da cidade de Canudos, um refúgio contra a opressão e a crueldade dos grandes terratenentes nordestinos, a chamada "indústria da seca". Seu líder, Antônio Conselheiro, assim como dezenas de outros país afora, como o monge José Maria em Santa Catarina, o fundou como um refúgio para sua seita religiosa, e nunca quis problemas alguns com autoridades terrenas. Acontece que, em um país com uma desigualdade social tão pornográfica como o Brasil, sua pregação atraiu centenas de milhares de nordestinos, encantados com a nova opção de um alívio de sua injusta vida terrena. A elite e a classe média nordestina, como é óbvio, sentiram-se ameaçados em seu poder quase divino sobre a sociedade, e eis aqui um testemunho incrível de quão antiga é a indústria de fake news com fins políticos no Brasil. Espalharam-se dezenas de teorias mirabolantes sobre Canudos, todas sem fundamento algum, mas feitas sob medida para incitar uma comoção primeiro local, depois nacional contra a cidade. Mesmo com armas rústicas, sem preparação militar ou absolutamente nada de estudo militar, o povo canudense conseguiu rechaçar três expedições do exército profissional brasileiro até que, por fim, como era de se esperar, acabaram derrotados, aliás, derrotados não, massacrados covardemente. Mulheres, crianças, velhos, todos degolados friamente por este exército brasileiro, tão decantado e querido pelo povo brasileiro.
Em 2017, Canudos e Antônio Conselheiro seriam tardiamente reconhecidos como heróis do povo brasileiro, e ele teria seu nome inscrito no livro dos heróis da pátria, como símbolo da resistência secular do povo brasileiro contra os desmandos selvagens de sua elite e classe média estrangeira. Mas Canudos nos fala até hoje.
Não darei cinco estrelas ao livro pois, como todo livro escrito no século XIX e início do XX, o autor acredita religiosamente na verdade do racismo científico, que pregava o extermínio dos negros no Brasil devido à suposta "inferioridade" dele perante outras raças. Mas sem dúvida, o livro, ainda que imperfeitamente, é um clássico e, como tal, uma ode ao povo brasileiro, a quem o pessoal dos grandes centros urbanos do litoral tantas vezes despreza, como se fossem um povo estrangeiro. E Euclides da Cunha toca exatamente nesta ferida, tão atual ainda hoje.