Amanda 24/02/2018Grand finaleComeçar bem uma trilogia não é a tarefa mais árdua de um escritor, mas saber finalizar uma história grandiosa fazendo jus às expectativas criadas, senhores, isso sim é uma verdadeira provação. E é exatamente isso que Abercrombie conseguiu fazer no último livro de A Primeira Lei.
Se o primeiro volume nos mostra só aperitivo da história, a pontinha do iceberg, o início da jornada, em O Duelo dos Reis temos o final se apresentando desde a primeira página e isso foi uma surpresa pra mim, e olha que estou acostumada com trilogias. Dificilmente eu vi um autor começar a fechar as pontas e delinear o final tão cedo. E apesar de chamar de cedo, não é essa a impressão que passa. É um desenrolar lógico em um ritmo excelente, já que o Abercrombie vinha tecendo vários fios tão esparsos nessa trama. Nada mais justo do que entrelaçá-los ponto a ponto. Diferentemente de muitas histórias, não há aquela sensação de correria no final. É um processo.
A ação é praticamente ininterrupta. Entra capítulo, sai capítulo e o ritmo da narrativa continua de tirar o fôlego. Violento e implacável como sempre, com o mesmo humor mordaz e a mesma sagacidade para nos enredar nas situações mais imprevisíveis e nos chocar. Sim, chocar. Muita coisa eu não esperava que acontecesse. Outras eu previ desde o livro anterior, mas não acredito que deveriam ser surpresas tampouco.
O problema principal apresentado, além da guerra no Norte e o problema com os gurkenses que já vem do livro anterior, é a sucessão do rei. Já que os dois herdeiros legítimos foram mortos, com o falecimento do rei o trono fica disponível para uma votação. Por vários capítulos acompanhamos os membros do Conselho Fechado conspirando por números e votos, subornos, aliados e inimigos e essa politicagem é um pouco chata. Salva-se pelo humor característico do autor, que nos arranca algumas risadas no meio de tanta sujeira.
Além disso ainda há a frustração com a Semente e o problema com Bethod, que parece ter chegado em um breaking point. É agora ou nunca. O agora demora uma infinidade, mas é uma espera sangrenta e eletrizante de se acompanhar. Os gurkenses também estão impacientes e é interessante e angustiante ver como o povo da Terra do Meio lida com eles.
A realidade bruta ainda continua no traço do autor, bem como as lições de moral completamente pessimistas. Muito em parte pelo mago Bayaz, cada vez mais egoísta e ganancioso. Se no livro anterior eu já comentei que ele destoa do clássico mentor bondoso e paternal, em O Duelo dos Reis ele mais parece um padrasto rancoroso. Descobrimos muito do passado dele, quem o Primeiro dos Magos realmente foi desde o princípio e seus objetivos obscuros. O tal bem maior (para quem?).
Cachorrão (não gostei da tradução desse nome, mas é o que tem pra hoje) rouba a cena em vários capítulos próprios, superando em muito, na minha opinião, o West que estava presente desde o começo e divide com ele o mesmo cenário nórdico. Aliás, West é um personagem tão contraditório e hipócrita, porém realista e bem construído, que é dificílimo simpatizar com ele, mas impossível não reconhecer a veracidade dele.
Logen me pareceu muito perdido nesse final da trilogia, um personagem que me tornei tão apegada... mas acredito que o autor conseguiu um desenvolvimento natural para ele e com certeza o rumo que ele tomou nos transmite uma mensagem bastante clara.
"É preciso ser realista. Ele havia brincado de ser um homem diferente, mas tudo fora mentira. Do tipo mais difícil de identificar. Do tipo que você conta a si mesmo. Ele era o Nove Sangrento."
Jezal é aquela situação de sempre, um personagem que a gente até tenta gostar mas é uma missão heroica. Muitas mudanças acontecem, ele é super bem trabalhado e desenvolvido e percebe-se outra mensagem que o autor pretende passar através dele. Não faz muito o estilo de Abercrombie traçar a jornada do herói e tirar leite de pedra, portanto não espere muito por isso.
Por fim, e mais interessante, eu diria, Glokta continua sendo a estrela do livro. Do começo ao fim, o personagem mais marcante e odiosamente adorável que o autor poderia criar. Arrisco dizer, um dos meus personagens favoritos até hoje. Top 10, com certeza. Sarcástico, rascante, se tem um personagem que segue um arremedo de jornada do herói é Glokta. Mas nada aqui é convencional, obviamente.
Uma personagem que lamentavelmente perdeu espaço nesse fechamento foi Ferro. Ainda que desempenhe papel crucial, toda a energia e fúria de Ferro me pareceu mais branda. Para sempre modificada após o que aconteceu no segundo livro, ao que parece. No entanto, Ardee, que se mostrou um tanto chata no primeiro livro e quase não apareceu no segundo ganha enorme destaque neste terceiro e proporciona ao leitor momentos tristes, divertidos, ácidos e belos. Complexos, como vocês podem perceber, assim como ela sempre foi.
O autor conseguiu se manter fiel aos personagens que criou, desenvolveu-os, deu voz própria a cada um tanto através de traços marcantes na narração em terceira pessoa quanto nos diálogos excelentes. Abercrombie deu vida a cada um deles. E eu sentirei saudades de todos.
A Primeira Lei é uma trilogia imponente, marcante, inteligente e cruel. Cada livro nos proporciona uma imersão crescente e viciante e é impossível parar de ler até a última página. O único risco aqui é querer mais.