Daniel Assunção 25/08/2021
Lê então meu invento de pura vibração sem significado senão o de cada esfuziante sílaba, lê o que agora se segue:
"Com o correr dos séculos perdi o segredo do Egito, quando eu me movia em longitude, latitude e altitude com a ação energética dos elétrons, prótons, nêutrons, no fascínio que é a palavra e a sua sombra."
"Sigo o tortuoso caminho das raízes rebentando a terra, tenho por dom a paixão, na queimada de tronco seco contorço-me às labaredas."
Clarice é de uma originalidade indefinível. Por sua acessibilidade, alguns leitores mais instruídos chegam aos seus livros esperando um texto morno, acreditando (ou teimando) que os suspiros e o alarde causados pela autora são frutos de pedância e clichês. Outros torcem o nariz pela "falta de técnica" - os mesmo que pregam que a literatura não é utilitária, que dizem que Borges foi mais longe mas não sabem dizer por quê.
Fico atento a mítica que ronda a escritora, para não me apoiar nessa ilusão pra dizer o que penso. Mas realmente, me parece que Clarice é uma grande formalista. O que outros escritores usaram de técnicas para arrendondar e elevar ao máximo suas estruturas (num esforço louvável), e produzirem os maiores livros da literatura, Clarice usou do seu cotidiano, de sua postura, de suas relações para construir sua semântica (não com menor esforço, não de graça). Ou seja, de certa maneira, suas obras são tão técnicas quanto qualquer outra expressiva elaboração artística.
Pra mim, a leitura de Água viva foi como aquelas máximas que já conhecemos, achamos interessantes mas não tocam muito; depois de um tempo, passam a ser norteadoras. Até que o sentido se empalidece, se esgota, para, de novo, dentro de uma década, voltarem com tudo, com uma única posição de palavra renovando todo o entendimento. É atmosférico, mesmo. Tem que se deixar tapear, para depois não ter que pôr no epitáfio "como fui ingênuo".
Outra vantagem de Água viva é que não há limites demarcados, então se foge daquela ideia de escolher uma direção, e ser condenado a alienar-se da outra. Como em uma passagem que a autora discorre sobre o espelho (os espelhos são um só, o Espelho) - a existência sem componentes.
Nabokov, aquele ótimo controlador, usaria um exemplar da Clarice Lispector para arremessar nas pretensões estruturais de muitos que estão no cânone e seus súditos.
" Há palavras proibidas.
Mas eu denuncio. Denuncio nossa fraqueza, denuncio o
horror alucinante de morrer - e respondo a toda essa infâmia
com - exatamente isto que vai agora ficar escrito - e respondo a
toda essa infâmia com alegria. Puríssima e levíssima alegria. A
minha única salvação é a alegria. Uma alegria atonal dentro do it
essencial. Não faz sentido? Pois tem que fazer. Porque é cruel
demais saber que a vida é única e que não temos como garantia
senão a fé em trevas -porque é cruel demais, então respondo com
a pureza de uma alegria indomável. Recuso-me a ficar triste.
Quem não tiver medo de ficar alegre e experimentar uma só vez
sequer a alegria doida e profunda terá o melhor de nossa verdade."