Aline T.K.M. | @aline_tkm 12/05/2014Merece ser lido em algum momento da vidaEla nasceu com uma mancha branca na córnea direita que tornava sua visão borrada e lhe dava aspecto estrábico. O uso de curativos sobre o olho foi um verdadeiro suplício que marcou a primeira infância da menina mexicana.
Tida por si mesma como uma espécie de Gregor Samsa, a autora e protagonista deste relato autobiográfico é estranha aos demais e a si própria. Em O corpo em que nasci, Guadalupe Nettel narra sua infância e juventude de maneira muito direta, inserida em uma vida marcada por contradições e pela baixa estima de si mesma.
Vida repleta também de descobertas. Do próprio corpo, quando criança, nas escadas de serviço do prédio em que vivia; mais adiante, do amor e das relações com o sexo oposto. De diferentes culturas e classes sociais na escola, durante os anos vividos em Aix-en-Provence, no sul da França, onde conheceu outros estrangeiros – vários deles mantidos “à margem” pelos franceses. Do submundo dos boêmios e artistas, em contraste com a juventude burguesa do liceu franco-mexicano que frequentou ao retornar ao México.
Sendo ela mesma uma freak, sua prosa busca nos aproximar de outros outsiders, a quem aprendemos a admirar – eles são, de fato, mais interessantes do que toda a massa dita “normal”. Dotada de uma personalidade forte, mas algo introspectiva e até antissocial, a protagonista revela detalhes que, de tão preciosos, ganham aspecto quase lírico na mente do leitor. Como, por exemplo, a existência de pessoas que adquirem importância vital em algum momento de nossas vidas, ainda que nunca cheguem a tomar conhecimento disso. (Tomei aqui a liberdade de dizer “nossas” porque esse tipo de evento não é raro em minha vida, e imagino que não deva ser na de vocês.)
Filha de pais bastante liberais, a convivência forçada com o conservadorismo da avó não contribuiu para amenizar a distância da mãe e a falta de notícias do pai. A senhora – estava mais para uma velha saída do século XIX, segundo Guadalupe – exercia distinções de gênero entre a menina e o irmão de forma até impiedosa.
Durante a infância nos anos 70 e a juventude na década de 80, a narradora enfrentou o desafio de aprender a aceitar a si mesma quando os demais pareciam não aceitá-la. A época considerada dourada para a maioria foi para ela uma jornada – pontuada por descobertas, mudanças e incertezas – rumo ao autoconhecimento e à reconciliação consigo mesma.
Por conter referências que vão desde García Márquez até Almodóvar, passando por The Cure e Luis Buñuel; pela prosa irresistível; ou simplesmente por se tratar de um livro impossível de largar: O corpo em que nasci merece ser lido em algum momento da vida – o quanto antes, se possível.
O corpo em que nasci faz parte da coleção OTRA LÍNGUA, lançada em 2013 pela Editora Rocco e que traz autores que compartilham a mesma língua: o espanhol latino-americano.
LEIA PORQUE...
A prosa conquista pela sinceridade, ainda que, segundo a própria autora, as interpretações sejam inevitáveis. Rico em cada aspecto e detalhe.
Para aqueles que dirão “ah, mas não curto biografia...”, este aqui tem ares de ficção - baseada, claro, na vida da escritora.
DA EXPERIÊNCIA...
Lembra quando falei que Águas-fortes cariocas foi o melhor que li da coleção Otra Língua até agora? Então, O corpo em que nasci superou! E digo mais: este pequeno de duzentas e poucas páginas já entrou para os meus três favoritos do ano (salvo se acontecer algo estrondoso e caírem livros muito, muito extraordinários em minhas mãos).
FEZ PENSAR EM...
“A incrível e triste história da Cândida Erêndira e sua avó desalmada”. O conto, do Gabriel García Márquez, é lido e apreciado às escondidas pela protagonista, que encontra nele um pouco de si.
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http://livrolab.blogspot.com