Lucas 17/09/2018
A eternidade literária em um novo ângulo: Um tratado sobre o fim dos preconceitos literários e sobre a extinção de uma era
São infinitos os modismos e paradigmas que existem dentro da literatura. A secular questão das adaptações cinematográficas, as imagens pré-concebidas de certas obras, a contundência de opiniões alheias... Tudo isso e mais uma enormidade de fatores contribuem para que o leitor cresça e se desenvolva com base em teorias, achismos e opiniões unilaterais que muitas vezes afastam este mesmo leitor de um grande livro.
E O Vento Levou, obra-prima da escritora norte-americana Margaret Mitchell (1900-1949) é o mais perfeito exemplo de livro maravilhoso mas que é vendido erradamente, o que cria certos preconceitos. Neste caso, a obra passa a impressão de ser um romance "dramático" ou algo no estilo Jane Austen: uma protagonista feminina forte, um cavalheiro encantador e uma opressão social ora intensa ora disfarçada. A inconfundível imagem-símbolo da adaptação cinematográfica (o ator Clark Gable tendo nos braços uma jovem Vivien Leigh, com um olhar apaixonado) alimenta o conceito de "romance feminino", que acompanha o livro. É uma tese meio machista, de fato, mas há sim um certo preconceito literário com relação à obra entre os homens. Mas as primeiras páginas já desconstroem isso: E O Vento Levou transcende o passar das décadas e todo e qualquer pré-conceito advindo de "lendas urbanas" que tentam limitar o público-alvo de sua narrativa.
Katie Scarlett O'Hara: um lindo nome, mas mais do que isso, um símbolo. Sinônimo de determinação, de transformação, de resiliência e de, por que não, polêmica. A protagonista d'E O Vento Levou é tão incrível, crível e emblemática que parece palpável, tamanha a sua complexidade. Definitivamente, a maior personagem feminina literária da história (na visão do autor da resenha) é um exemplo de garra e força de vontade, moldado por meio de uma sociedade que não via com bons olhos a independência feminina.
Tamanha dignificação da protagonista não é baseada apenas em floreios ou boas atitudes. Grande parte dos pensamentos e ações de Scarlett na obra são alvos de crítica e nutrem até mesmo certa repulsa por parte do leitor. Sua crueza, sua inicial futilidade, sua falta de consideração para com certas pessoas ou parentes que a rodeiam e seu eterno senso de "estrelismo" deixam quem está lendo sua história com raiva em vários momentos. Mas em todos eles é preciso que se avalie Katie Scarlett como uma pessoa prática, que não se importaria muito com a sua honra ou sobrenome em nome de uma vida melhor a ela e aos seus. Não há sacrifício que não possa ser feito, nem valor que possa ser quebrado para que haja comida na mesa e uma cama quente. Mas assumir essa postura materialista traz um preço que nem toda a pessoa é capaz de pagar...
A mocinha (começa a história com dezesseis anos) é a primogênita de Gerald O'Hara e Ellen Robillard: ele, imigrante irlandês, ela, descendente de franceses. Fica nítido que cada um dos pais de Scarlett carrega consigo muito das características de sua respectiva origem. Enquanto o pai é impulsivo, dono de um caráter quente, Ellen parecia feita de porcelana: delicada, mas forte por dentro. Além de Scarlett, o casal teve mais duas meninas: Suellen e Carren, ambas abissalmente distantes da grandeza de sua irmã mais velha, cada uma com seu respectivo motivo, como o leitor perceberá. Em meio a uma história fascinante de superação e força de vontade, Gerald, recém-chegado aos EUA, adquire Tara, a fazenda que irá tomar para si ares de protagonista oculta, já que tudo acaba girando em torno da sua manutenção e desenvolvimento.
Além do núcleo familiar dos O'Hara, são vários os personagens coadjuvantes que merecem menção. Dentro disso, chamará a atenção do futuro leitor a figura de Melanie Hamilton, mulher encantadora que está de casamento marcado com Ashley Wilkes, vizinho de Scarlett e seu grande amor (tais revelações não são spoiler's, pois aparecem logo nas primeiras páginas). Melanie é a irmã de Charles, tímido personagem que exercerá grande importância inicial na história. Há ainda os escravos Mammy (babá) e Pork (camareiro), cujas falas (assim como de outros escravos) são transcritas com diversos lirismos típicos de pessoas sem instrução (o que é algo que traz uma forte realidade à escrita de Mitchell). Ainda existem outros personagens igualmente importantes e, algo louvável, são desenvolvidos em sua plenitude. Todo o texto em si traz escancarada a preocupação da autora em demonstrar cada personagem, protagonista ou não, em seus anseios, pensamentos e justificar suas atitudes.
Por mais que muitos nomes sejam ignorados (até para que se evitem maiores revelações antecipadas), é impensável que se teça qualquer comentário sobre E O Vento Levou sem que se mencione o protagonista masculino da obra, o capitão Rhett Butler. Se Scarlett era um contraponto, uma figura "fora da curva" de um padrão social secular àquela época, Butler era um contraponto a ela própria. Suas atitudes ferinas, sempre colocando a protagonista em seu devido lugar nos momentos em que o já mencionado "estrelismo" salta aos olhos, são um deleite único (os diálogos entre os dois são momentos totalmente inesquecíveis). Mas assim como Scarlett, Rhett é alvo de ressalvas: suas atitudes por vezes são injustificáveis e é natural que se desenvolva raiva por elas.
Se no estilo já mencionado de escrita da maravilhosa Jane Austen (1775-1817) há a presença de cavalheiros plenos, com condutas simples e transparentes que são símbolos de toda a literatura (Mr. Darcy que o diga), Rhett Butler é criado a partir de tudo o que há de mais mundano num contexto assim. Sua origem familiar, seu passado e, principalmente, sua visão de sociedade, são sombrias: para ele, o mundo é um lugar cruel e o materialismo é um elemento central da convivência social. Mas Butler está neste mesmo panteão do par romântico de Elizabeth Bennet (Orgulho e Preconceito) justamente por aliar a praticidade necessária no entendimento comum entre marido e esposa e aquele fulgor irremediável e eterno que é necessário na relação. Tal atributo faz dele um homem passional, disposto a assumir os riscos de suas atitudes e, talvez por isso, ainda mais real.
Tara ficava no condado de Clayton, região noroeste do estado da Geórgia, cerca de 50 quilômetros distante de Atlanta, a capital e cidade mais conhecida do estado (e onde se passa a maior parte da narrativa). A fazenda e as propriedades vizinhas simbolizavam bem o velho sul dos EUA: vastas regiões de terra vermelha que produziam todo o algodão do país. Uma terra onde a família e a honra não eram meramente conceitos: eram a essência de um modo único de viver que foi se extinguindo com o tempo. A narrativa d'E O Vento Levou começa em 11 de abril de 1861, precisamente um dia antes do início daquele que é o maior conflito civil da história dos EUA: a chamada Guerra de Secessão, que rachou o país entre o Norte e o Sul.
Os livros de história retratam que a guerra envolvia quase que unicamente a questão da escravidão, mas E O Vento Levou expande essa questão: o Sul, que sustentava a produção agrícola do país, dependia da mão de obra escrava para o manejo do algodão e do tabaco, e era o grande sustentáculo dessa produção nacional. Já o Norte, com um solo mais rochoso e impróprio para agricultura, se especializava no comércio e manufatura e o acúmulo de capital (em consonância com a Primeira Revolução Industrial) fez com que a região fosse se desenvolvendo muito mais rapidamente que o Sul. As tensões foram aumentando a tal ponto que no mesmo ano de 1861 os sulistas criaram os Estados Confederados da América, uma associação política criada entre seis estados do Sul para combater as ações de Abraham Lincoln (1809-1865), abolicionista que tinha vencido as eleições presidenciais no ano anterior.
A Geórgia, um destes seis estados, assumiu posição de destaque no conflito, e como a narrativa se debruça sobre Scarlett, sua família e seus vizinhos, todos confederados, a narrativa traz um ângulo nunca antes tão bem elaborado: a história contada a partir do lado perdedor de uma guerra. O leitor sabe que a vitória da União (estados do Norte) destruiu o Sul; Atlanta mesmo, na época uma cidade com dez mil habitantes, foi incendiada e pouca coisa sobrou (hoje é uma cidade pujante, sede mundial da Coca-Cola). Mesmo que não seja mencionado diretamente os pormenores de uma batalha sequer, a narrativa é capaz de elucidar todas as questões deste conflito por meio da visão das mulheres que ficavam em suas casas, esperando seus filhos, maridos, irmãos e pais que estavam lutando por todo um sistema social que acreditavam ser impossível ruir.
Essa elucidação se dá pelos sofrimentos passados por Scarlett. Por motivos próprios da narrativa, ela vê todo o conflito de Atlanta e o drama surge com força no final da segunda parte da obra (são cinco partes no total). Em meio ao caos e à destruição, Scarlett parte para uma jornada onde imperam o dramático e o improvável, que acaba rompendo seus laços finais com a adolescência mimada que até então possuía. É impossível não devorar o livro nestes momentos de agonia, tamanha a decrepitude que cerca a protagonista.
As duas partes finais do livro se dedicam a situar Scarlett e seus entes próximos na chamada Reconstrução, a fase que sucedeu o conflito. Aqui neste período o leitor adquire ainda mais noção da singularidade d'E O Vento Levou em demonstrar o lado ferido e derrotado de uma guerra: talvez mais dificultoso que o próprio conflito em si é o que está por vir após o seu fim. Com agora o controle dos ianques (termo mais popular para designar os seguidores da União), os antigos confederados eram perseguidos pelas autoridades pelas mais obscuras e fúteis razões. Foi uma época dura, de muito trabalho e pouca riqueza, que marcou o fim de toda uma estrutura social secular dos Estados Unidos.
Dentro desse contexto, Mitchell descreve o impacto da abolição da escravatura. Com a vitória da União, os escravos ficaram livres; mas como não houve nenhum tipo de mecanismo sustentável para eles, apenas um apadrinhamento político, grande parte dos escravos foi renegada à pobreza e à revolta. Alguns negros ainda ficaram com seus respectivos donos, mas a grande questão aqui é a distorção que livros populares de história fazem a respeito dos sulistas, colocando-os como verdadeiros carrascos dos escravos. A nova vida de Scarlett demonstra que muitos nortistas defendiam a abolição apenas da boca pra fora: boa parte deles era repugnantemente racista, tratando ex-escravos como animais desprovidos de qualquer tipo de inteligência ou humanidade. Muitos sulistas, por outro lado, mesmo que acreditassem que a escravatura era meramente uma estrutura da sociedade, tratavam muito melhor os negros do que quem se dizia seus libertadores. Mas se há uma coisa que a história não permite é a generalização: não havia um lado "inocente" na questão. O que a autora oferece formidavelmente é uma visão diferente de um tema eterna e universalmente polêmico. O livro em si, quando publicado, gerou intensas polêmicas por mostrar esse lado menos popular do conflito que marcou a marca várias gerações de norte-americanos.
"Scarlett O'Hara não era linda, mas os homens raramente se davam conta disso quando enveredados por seu encanto, como acontecia aos gêmeos Tarleton". A primeira frase d'E O Vento Levou é interessante: parece que todos 67 capítulos da obra derivam deste "mas"; tudo seria completamente diferente se Mitchell não tivesse escrito essa conjunção neste momento. Pensando bem, toda a lógica imiscuída em cada linha do livro é baseada num "mas", numa contraposição ao que se entendia como algo valoroso, ético, honroso ou honesto. A jornada de Scarlett não é um lindo romance, composto de uma gananciosa determinação e ambientado num contexto de dor e rivalidade; é, antes de tudo, a história de alguém que não sabia como abaixar a cabeça frente às dificuldades próprias e que não questionaria seus métodos para obter uma vida melhor. A capacidade de adaptação frente a um mundo hostil é o grande baluarte d'E O Vento Levou e, condiga-se, é algo muito distante de um melodrama feminino. E tais perspectivas atravessaram as décadas e permanecerão para sempre, pois a obra, no alto de sua excelência, é impossível de ser esquecida pelo ventar dos anos.