willian.coelho. 18/07/2023
Uma trama sobretudo psicológica
“Heart of darkness” (1899) é a grande obra de Joseph Conrad - autor que, apesar de dominar alguns idiomas, resolveu adotar, com primor, o inglês britânico para a sua literatura. Nela, utiliza-se da experiência vivida numa viagem náutica ao Congo belga de Leopoldo ll (literalmente dele, uma vez que o déspota fez do território sua propriedade privada), na qual presenciou o morticínio da exploração de recursos naturais com mão de obra nativa análoga à escravidão.
A trama é narrada pelo marinheiro Marlow aos seus companheiros, e o leitor desfruta a história como se um deles fosse. O terror, indubitavelmente, é um componente preponderante, contudo não no seu modelo tradicional: o medo é criado por elementos reais (e até banais), mas mistificados, como a vastidão da floresta, o silêncio e a escuridão da atmosfera quase intocada pelo homem civilizado, a figura bestial e imprevisível do aborígine. Isso, por si só, é bastante excepcional, porém o enredo introduz o autêntico Kurtz, a personificação do “explorador pela causa do progresso” - um sujeito que se tornou um simbionte do obscuro.
Dada a complexidade do texto e o desinteresse do mesmo em mostrar grande porção da sua essência, Conrad acabou gerando uma fonte de infindáveis interpretações e um material filosófico de primeira que tem como foco o âmago do homem. De dentro de um recorte histórico pouquíssimo abordado, ele traz um livro sobretudo psicológico e, como é de se esperar, reflexivo e difícil (arduidade que é reforçada pela escrita deveras peculiar e lirismo empregados). O estilo do escritor é com certeza complicado de reproduzir (um inglês rebuscado e tomado de adjetivações, todavia usando vocábulos não tão usuais), culminando em traduções bastante diferentes.
Vale destacar também a adaptação do Coppola “Apocalypse Now” que, por mais que seja substancialmente diferente do original (certamente por questões mercadológicas: é muito mais palatável fazer um filme no contexto da Guerra do Vietnam do que no neoimperialismo belga), é um deleite da sétima arte, extremamente competente. Para finalizar, tomando permissão para destoar um pouco a minha tipologia textual e flertar com a narração, gostaria de citar um relato próprio para embasar a verossimilhança do horror proposto por Joseph. Eu e dois amigos costumávamos adentrar matagais (pequenas florestas, com vegetação alta, densa, com árvores de grandes copas) e passar a noite perambulando no interior deles (como armas, usávamos cacetetes, facões e taser): nunca me esqueço de como era incômodo o silêncio absoluto, a penumbra que podia ser vencida só por um feixe da lanterna e que, mesmo assim, revelava uma paisagem que parecia infinitamente igual. E quando um pequeno animal desconhecido mesmo à distância reproduzia um som irreconhecível, não se sabia de onde vinha, o que era, seria uma pessoa (cabe salientar que somos completamente céticos)? Certo dia, anos depois, comentamos numa mesa de bar: “tentem se imaginar sozinhos, lá no meio, mesmo com lanterna, mesmo sabendo que nada aconteceria e que vivemos no mundo unicamente da matéria, passariam uma noite lá?”, chegava a dar um frio na espinha, eriçar os pelos, só de se projetar. Somos vulneráveis ao estrangeiro.