Luiz 21/09/2023
Viagem ao Abismo dos horrores do espírito humano
Livro: O Coração das Trevas
Autor: Joseph Conrad
Coração das Trevas é um livro que narra, durante uma viagem de barco, um histórica acontecida com o personagem principal, Charles Marlow, em um outro momento de sua vida, o momento em que decidiu dar vazão a uma espécie de "sonho" ou "autorrealização" que tinha em tornar-se um comandante de um navio e viajar por diversos lugares. Ou seja, por um lado temos um conto que explora grandemente o fator psicológico e emocional do narrador, e por outro, o mistério que poderia acontecer naquela viagem (decepcionando por um lado por não ser o foco da história, mas instigando por outro pra entendermos tudo que o protagonista passou pra chegar aquele momento inicial da história).
Charles comenta com a tripulação que sempre teve vontade de viajar e conhecer lugares até que decidiu se empregar numa companhia de comércio em águas doces do ramo de exploração de marfim, conseguiu a vaga de capitão, já que o anterior tinha morrido, assim inicia por uma jornada sombria e tenebrosa que o marcou de forma indelével.
Desde o momento em que participa da seleção do emprego até o momento em que começa a sua viagem em busca do navio que comandará, percebemos que será uma caminhada às entranhas de um abismo quase indescritível, similar à jornada de Dante ao centro do Inferno, no livro A Divina Comédia, mas aqui Marlow é atraído não exatamente pelo Diabo, mas algo muito similar à ele, Kurtz, no próprio Coração das Trevas em que ele habita.
"[...] A melhor maneira como consigo explicar para vocês é dizendo que, por um ou dois segundos, me senti como se, em vez de partir para o centro de um continente, estivesse prestes a zarpar para o centro da Terra."
(Charlie Marlow / Joseph Conrad, p.39)
Basicamente para exercer sua função de comandante precisa ir até seu barco, ao passo que é levado até ele, conversa com as mais diversas figuras e vê as mais diversas barbaridades,
Charles assiste praticamente impotente os nativos serem explorados, dezumanizados e massacrados para que a companhia tenha seu negócio, o ramo da obtenção de marfim, à "pleno vapor", essa realidade proporciona um verdadeiro horror humano e Marlow inevitavelmente se questiona sobre tudo ali, um conflito se forma e como síntese desse conflito temos, ele, totalmente impactado no mais profundo de sua alma, e que assim como nele o conflito se apresenta, veremos dualidades interessantíssimas na obra como um todo. Mas ao passo em que Charles Marlow percebe tudo isso também se dá conta que um nome ressoa frequentemente, Kurtz, um cara que comparado à todos os outros exploradores, consegue entregar a quantidade equivalente a todos os demais postos de exploração juntos, um homem conhecido por sua eficiência, brilhantismo e presença, conseguiu constituir um tipo diferente de relação com os nativos, é para eles como um "deus", inevitavelmente a jornada de Marlow é direcionada a ele sem que o perceba.
"[...] A questão era que se tratava de uma criatura talentosa e que, dentre todos os seus dons, o que se destaca com preeminência, o que tinha em si um senso de presença real, era sua habilidade de falar, suas palavras -- o dom da expressão, desconcertante, luminoso, o mais exaltado e o mais desprezível, um pulsante feixe de luz, ou uma enganosa torrente do coração de trevas impenetráveis."
(Charles Marlow /Joseph Conrad, p.88)
O livro, realmente, é diferenciado, possui diversas camadas interessantes de serem discutidas. Dentre elas ressalto algumas:
I) Camada "espiritual"
A todo momento surgem associações, como já tinha comentando antes, com o livro A Divina Comédia, principalmente o que se refere ao Inferno, então por vezes o personagem faz associações interessantes com Demônios, Serpentes e ao próprio Diabo. Somos conduzidos a uma perspectiva de que não só o personagem saiu do "plano terreno" e foi pra um "plano infernal" como também a própria questão da história ser sobre exploração, em um cenário no interior da África, existe a constante associação tanto dos nativos quanto dos exploradores com algo "não-humano", algo selvagem, animalesco e demoníaco. Um ambiente onde as almas sussurram no escuro, "almas penadas" caminham por aí, culpa, choro tristeza, tormento e o mal espreita em todos os lugares.
II) Camada "psicológica"
Ao passo que a Charles conta sua experiência temos a ideia de que toda aquela experiência vivida por ele o marcou de forma a somente agora agora ele conseguir elaborar tudo o que houve com ele. Isso é reforçado pela forma "traumática" em que ele fica no final da história, após voltar para "o mundo normal", e como o início do livro é justamente o que acontece após sua história, dá um efeito de catarse.
Pode-se pensar também que a forma como ele relata tudo é similar como quem conta um pesadelo, ora não sabendo o que é real e o que é produto de sua imaginação, que foi extremamente impressionada e dissociada dos eventos traumáticos.
Uma outra questão é a possível associação simbólica que pode ser feita com o personagem, numa espécie de exercício introspectivo ao estilo psicanalítico, descobrir que os horrores do alma humana e a possibilidade de tudo que um ser humano pode fazer ao desumanizar outro humano, nesse caso ele se dá conta de que ele é o próprio horror, e o "abismo" que existe na psiquê humana.
III) Camada "materialista"
Uma leitura mais fácil e recorrente é justamente a ideia típica de um "marxismo" ao estilo "opressor × oprimidos".
Sendo um cenário africano e de exploração é fácil fazer a associação típica dos capitalistas, e até mesmo "Colonizadores", ao explorarem economicamente os nativos, desumanizando eles completamente, sendo que por lógica eles seriam os donos daquela riqueza explorada.
A questão racial se encaixaria aqui também, bem como a ideia de uma forma de transformação daquela sociedade em algo mais "racional" e civilizado por conta de seus exploradores.
IV) Camada "primal"
Um elemento muito interessante no livro é a noção de que, em algumas sentido sim estamos sendo transportados pra um outro mundo seja o inferno ou não, mas que em algum sentido estamos nos deparando com a natureza, a floresta e o próprio ambiente é selvagem em todos os sentidos.
Existe uma ideia romântica da natureza como algo belo e toda aquela imagem mental de um campo ou florestas perfeitas, mar e cachoeiras, uma ideia de "paraíso intocado pelo homem", mas aqui chamo a atenção para a realidade, a natureza é cruel, um ser humano largado sem o devido preparo perece facilmente na natureza, que a todo instante, desde plantas até os animais mais selvagens se escondem, sendo tão mortal quanto um ambiente "civilizado" ainda que com altos índices de criminalidade.
A todo momento somos remetidos a temeridade do personagem por estar num ambiente tão hostil ao homem. O confronto entre "Selvagem × Civilização" é completamente imersivo.
V) Camada de "predestinação"
Há sutilmente uma ideia destino, ao passo em que o narrador tem a intenção de atitude para embarcar nessa jornada, por outro lado existe um sentimento de que o personagem estaria destinado àquilo tudo. Como se fosse, uma espécie de "escolhido" para o trabalho. Isso é reforçado pela ideia de ao final ele receber uma espécie de livro de Kurz, quase como uma espécie de mensageiro para o mundo, uma espécie de "apóstolo". De certa forma para o personagem existiu um "antes de Kurtz" e um "depois de Kurtz".
Existem outros diversos elementos interessantíssimos que o livro remete, mas me contento em abordar somente esses por enquanto, mas destaco que de forma incrível o autor consegue trabalhar o clima de terror magistralmente, estimula o imaginário do leitor muito bem, a questão da escrita e narrativa em forma de "pensamento ou diário" é muito boa, somos levados aos pensamentos de Marlow e possibilita nos sentirmos como alguém que também está lá conversando com ele e sentido tudo o que ele quer passar pra gente, o autor utiliza esse recurso de introduzir um narrador qualquer para depois ceder lugar para o próprio Marlow contar sua história e numa viagem retrospectiva e ao mesmo tempo introspectiva somos levados a entender toda a história.
Cabe dizer também que o livro proporcionou à inspiração para o filme Apocalipse Now do diretor Francis Ford Coppola, que fez também o filme O Poderoso Chefão; que ainda seja ambientado em outra época e em outro contexto, no caso numa guerra, consegue transmitir esse clima sombrio e misterioso que o livro carrega.
Outro ponto é que vários do acontecimentos do livro são baseados nos acontecimentos do Estado do Gongo e o Reinado de Leopoldo II na Bélgica, e uma viagem que o próprio escritor, o Joseph Conrad, vivenciou vendo nativos sendo explorados por um ditador.
Recomendo muito a leitura do livro!!