spoiler visualizarP. S. Brunno 10/12/2017
O bicho-da-seda, por P. S. Brunno
- Cópia de Agatha Christie?
Depois que terminei de ler O bicho-da-seda, procurei na Wikipédia uma biografia da Agatha Christie e eis que descubro que na sua história de vida tumultuada, ela um dia desapareceu misteriosamente para conseguir mídia para um de seus livros, aparecendo tempos depois num hotel, premissa bastante semelhante com o enredo do novo livro do detetive Strike. Mais semelhanças: Cornualha, cidade natal do Strike, incrivelmente é uma das paradas preferidas das férias do Sr. Poirot. Este segundo exemplar da persona masculina da J. K. Rowling foi reprise, o que não significa que seja um livro ruim, apenas que trouxe pouca novidade com relação ao primeiro livro e que ainda deixou questões sem resposta a serem desenvolvidas em volumes posteriores. Eu só gostei mais de O chamado do cuco.
- O enredo
O escritor ególatra Owen Quine desapareceu. A esposa, Leonora Quine, habituada com as andanças sem explicação do marido, deixa passar uma semana para pedir ajuda. O casal Quine tem uma filha, Orlando, Dodo, 24 anos, deficiente mental, cuja maior alegria está em desenhar com hidrocor e brincar com o orangotango de pelúcia apoiado às costas – no final, descobre-se que dentro do orangotango, estava a chave do mistério que levava diretamente à Elizabeth: um cartucho da máquina de escrever com DNA dela, nenhuma digital de Owen, portanto, ele nunca escreveu aquela versão do Bombyx mori. Por ser cognitivamente retardada, Orlando solta frases desconfortáveis ao conversar, diz que era “tocada” por Daniel Chard, diretor-executivo da Roper Chard (editora que publicava os seus livros) e que Elizabeth Tassel, agente literária do Owen “é má”, e foi responsável por seu sumiço. Leonora preferiu não acionar as autoridades britânicas oficiais, mas Cormoran Strike, um detetive particular em alta, bastante ocupado em muitos de casos de traição conjugal, com a crise financeira superada depois de desvendar o homicídio de Lula Landry julgado como suicídio pela polícia.
Leonora aparece no escritório do Strike e pede sua ajuda para saber onde o marido encontrava-se, acreditando que ele foi esconder-se em um retiro de escritores em busca de inspiração para um novo livro. Strike decide ajuda-la e traça uma rota de pessoas com quem conversar. Na orelha do livro, sabe-se que o tal Owen foi brutalmente assassinado, e eu esperei muito por isso, o que só ocorre lá na página 130 − um grande spoiler. Owen é encontrado justamente no local onde a esposa insiste que ele não estaria: na Talgarth Road, uma casa velha abandonada, patrimônio herdado de Owen e Michael Fancourt, romancista premiado amigo de Owen. A cena do Strike descobrindo o corpo do Owen completamente corroído por ácido, aberto como um porco e cercado por sete pratos e talheres é chocante e tensa, bem escrita, a autora não poupou palavras ao dizer que parecia demoníaco o que Strike encontra − esta cena é um dos pontos altos do livro. Strike fotografa a carcaça e memoriza que o intestino foi removido do corpo. No final, descobre-se que o intestino foi mesmo roubado pela assassina que entregou partes dele para um cão comer e atirou os restos decompostos de fezes na porta da viúva Leonora.
Uma das primeiras pessoas que Strike investiga é a agente literária do Owen, a Elizabeth Tassel, uma senhora estranha, agressiva com animais, maltratava os criados, tossia o tempo inteiro durante a conversa. Elizabeth é a assassina (uma mulher!); não desconfiei dela no começo, mas da Leonora Quine, o que seria uma grande falta de criatividade do autor escrever uma história onde quem solicita a investigação é quem matou. Leonora não chora pela morte do marido, tem um comportamento estranho que faz a polícia desconfiar dela como suspeita número um da morte de Owen. Devido a seu comportamento, Orlando fica morando com uma vizinha, afastada da mãe detida por um curto período, quando a ausência de provas apontava para ela.
Lá pelas tantas na investigação, Strike descobre que o motivo do assassino do Owen está no manuscrito não publicado chamado Bombyx mori, bicho-da-seda em tradução latina. Considerei mais uma alusão forçada a um título que não funcionou – igual O chamado do cuco. A explicação dada durante a história é “metáfora para o escritor, que precisava passar por agonias para conseguir um material bom”. Pensar em bicho-da-seda não me remete vagamente a esse motivo.
Strike rouba o manuscrito com muita facilidade, sem necessidade de armas ou chantagem, o pega de um cofre-forte, utiliza apenas ajuda de Nina Lascelles, sua amiga e parceira sexual que trabalhava na Roper Chard enquanto convivas estão distraídos numa confraternização literária. Pouco crível. Um livro dentro de um livro onde não se tem acesso direto a sua leitura para tirar conclusões próprias não é muito assertivo. Strike lê o livro em uma sentada e o leitor precisa confiar em seus resumos mentais efetuados durante a leitura. Bombyx mori recolhido por Strike (uma versão não oficial, escrita por Elizabeth, que editou todo o livro copiando o estilo de escrita do Owen) conta uma história de fantasia com pessoas que Owen conhecia e por quem sentia profunda antipatia, bizarro, incluí a própria cena do crime que Owen foi encontrado; é um livro vingativo, ilógico, cheio de citações promíscuas desnecessárias, como “piroca podre” e “pau mole”. Quem matou Owen não queria que Bombyx mori fosse publicado para não ser difamado publicamente.
Na história, o conhecimento do Robert Galbraith sobre agências literárias e mercado editorial é muito bem detalhado. Há comparações com a prosa russa de Dostoiévski e visita a um bar vitoriano frequentado por Dickens. Em várias passagens é dito que Owen é “escritor de um livro só”, o que seguramente não se aplica à Rowling, com livros pós Harry Potter adaptados em minisséries da BBC. Colocar pessoas nos livros é tido como um grande ato de amor; o fato de ser escritora é sinal de perceber coisas que outros não veem. Muito se diz a respeito de escrever e vender livros, mas pouco aparece sobre o ato de ler que subjaz o escrever. Suponho que na cultura europeia ler deve ser intrínseco aos hábitos das pessoas. Robin lê Investigative interviewing: psychology and practice, Strike lê Bombyx sem qualquer ponderação às transformações proporcionadas pela leitura.
A investigação segue com entrevistas em pubs londrinos com todas as pessoas que tiveram acesso ao livro, o que inclui muita gente: desde a amante do Owen, Kathryn Kent, escritora auto publicável de romances eróticos em e-books, cujo conteúdo do seu blog é lido por Robin, Jerry Waldegrave, editor de Owen na Roper Chard, Christian Fisher, um editor “moderninho”, até a transexual Pippa Midgley, autora das mensagens suspeitas no blog, que persegue e ataca Strike por não gostar de Leonora e por ter ficado ofendida com Owen ao retratá-la no livro como um ser sexualmente mutante. Todos são mostrados como possíveis suspeitos.
Strike conversa com muitas pessoas, vê a Vogue da Emma Watson numa banca de jornal, se despede dos telefonemas cuspindo obscenidades com Dave Polworth, o amigo mais antigo de Strike que sempre o ajuda (para Dave, Strike tem o apelido de Diddy). A história segue com Strike constantemente lamentando o casamento de Charlotte com o futuro visconde Croy, Jago Ross, de quem já foi amigo. Tive a impressão que Strike é um detetive das antigas atuando em um mundo moderno: ele pouco usa a internet, quase nunca consulta outros recursos ou pessoas como faz o Robert Langdon, especialista em simbologia. Strike sobreviveu a uma guerra, mas não é especialista em tema algum, confia na própria intuição e dá poucas tarefas para Robin.
Strike resolve o caso Owen com um clique, através do pensamento dedutivo que surge para ele num restaurante, desvenda o crime “como uma tampa torta que encontra sua rosca”, como fez no caso Landry na sacada do apartamento dela. No começo, Strike pensa no autor do crime tal qual alguém que foi atiçado, feito um tubarão que não atacaria a menos que alguém se aproximasse, recordando-se do ataque sofrido por Dave, anos atrás. Essa metáfora foi interessante porque Elizabeth é mostrada com olhos de tubarão no final. Relendo excertos de Poirot, descobri que ele também chegava às conclusões dos crimes por meio da dedução, do insight, o que denota muita perspicácia e inteligência do autor ou um desfecho forçado para o crime que não seria descoberto de outra forma. Fico com a primeira explicação.
- Robin, a estrela do livro
Robin ganha destaque em O bicho-da-seda. Strike e Matthew enfim se conhecem em um restaurante, onde o contador Matthew se exibe para Strike e se mostra bastante desinteressado por sua vida de detetive, o que surpreende e chateia Robin, pois desconhecia esse traço narcísico no marido. Robin frisa que não é psicóloga e, mais uma vez, Galbraith deixou para depois a explicação do incidente que fez Robin largar a faculdade de Psicologia, embora ela tenha extrema sensibilidade para falar com as pessoas: sabe como conseguir o que precisa de uma Pippa agressiva, serve chá para ela em meio às perguntas que a faziam sentir-se importante, dá uma ótima explicação sobre “amor materno”. Robin não soluciona nada sozinha, a sua participação restringe-se ao rapport com os suspeitos, e ela o faz impecavelmente. Acredito que Robin não ser efetivamente formada em Psicologia tratou-se uma maneira do autor (que também não é formado na área) permitir-se cometer deslizes e ingenuidades ao dar explicações psicológicas que desconhece a fundo sem receber muitas críticas de quem o lê. Robin é quase psicóloga, então, perdoável que falhe.
No decorrer do livro, Robin mostra-se ótima motorista, salva a si própria e Strike de uma colisão frontal, fato que omite de Matthew, mas comete o deslize de citar a cidade onde estava realizando uma investigação quando devia estar à caminho de casa. A Sra. Cunliffe, mãe do Matthew é citada como acometida por um miniderrame no começo da história e morre de repente. Robin chega atrasada no seu funeral porque estava na estrada com Strike. Usar a morte de personagens terciários como a mãe do Matthew, me pareceu um recurso para alongar a história. Cunliffe, morta ou viva, não interferia na rotina do casal, mas sua morte deu um problema com o qual Robin ocupar-se afora o assassinato do Owen.
- O final
“O jardim estava deserto. Um cupido apontava seu arco e flecha diretamente para o céu”. Galbraith continua bom com finais. Strike vai fumar fora do restaurante e a primeira pessoa que aparece no jardim é Michael Fancourt, e pelo modo como ele apareceu e a conversa se desenrola, eu podia jurar que Fancourt era o assassino. Mas não, Elizabeth Tassel, surge na neve do jardim e ouve a explicação de Strike: ela estava rouca e tossia por ter inalado o ácido com que matou Owen. Elizabeth o matou durante um evento comemorativo, a Festa das Fogueiras, depois de fingir publicamente brigar com Owen, de modo a não suspeitarem que eles ainda mantivessem contato caso os vizinhos não ouvissem o homicídio. Elizabeth convidou Owen para tirar fotos na Talgarth Road abandonada e bateu em sua cabeça com o calço de metal da porta, retirou o seu intestino e fugiu. Elizabeth corre ao ser desmascarada, pega um táxi na rua e Robin era a motorista! Elizabeth desconfia da mulher loura que vira dias antes na sua rua da sua casa, ataca o pescoço de Robin e batem o carro. Elizabeth é presa e Robin sai com pequenos ferimentos e uma concussão. A história termina com Strike visitando a casa da Robin, contando como tudo se resolveu, que a editora Roper Chard publicará a versão original do Bombyx mori que esteve escondido num freezer junto com o resto do intestino do Owen. Strike entrega um desenho da Orlando (que volta a morar com Leonora) para Robin e beija o dorso da mão, já que nunca se abraçavam.
O que ficou inacabado em O bicho-da-seda: a explicação da interrupção universitária da Robin, se Matthew irá finalmente aceitar o emprego dela, quem é a nova secretária da Temporary Solutions que substituirá a Robin durante sua recuperação, e como elas se relacionarão. Se Strike irá encontrar-se com Charlotte depois de casada, se ele irá relacionar-se seriamente com outra mulher, se possui um revólver e qual será seu próximo crime.