Krishna.Nunes 14/08/2023O ser humano e sua fascinação pela violênciaNós podemos questionar se a violência é natural ou algo que a sociedade faz conosco. Mas é inegável que o ser humano sente uma fascinação pela violência. Estamos constantemente em posição de luta predatória, conflito ou dominância. Somo até capazes de encontrar beleza nela, quando nos deparamos com uma obra de arte, seja uma pintura, um filme, uma canção ou um livro que esbanjam violência. Por estarmos imersos em ambientes hostis, a violência também se torna parte da nossa cultura, de quem nós somos. É esse esbanjamento exuberante de violência que torna Meridiano de sangue uma obra monumental.
A concisão e a singularidade da linguagem do texto, de maneira aparentemente paradoxal imprimem a essa narrativa um tom muito detalhado, com descrições gráficas e minuciosas, sem ser prolixo, pois cada detalhe não está ali à toa. Poucas vezes o diálogo é usado como recurso textual. As descrições do calor escaldante, da imundície, da secura, da poeira e da lama, da sede e do sangue, da eminência da morte, são normalmente o fio condutor para a criação de cenas esplendorosas.
O kid, um anti-herói sem nome, frágil e despedaçado, não passa de um garoto que fugiu de casa aos 14 anos e que algum tempo depois viaja ao meio-oeste americano. Ali ele será exposto a perigos que exigem de si uma capacidade de sobrevivência desmedida, e acabará por ser recrutado para fazer parte de um bando de mercenários liderados pelo capitão Glanton, que viaja pelo deserto praticando saques e assassinatos, coletando escalpes para serem vendidos a governadores mexicanos que pagavam por esse serviço.
O deserto não existe por si só. Ele necessita dos seus atores para fazer com que o clímax, que deixa o leitor num estado de constante expectativa, vá sendo elevado a um nível de desafio sobre-humano. Um grupo diverso de homens de origens variadas, com passados obscuros e diferentes motivações, cada um com um desejo de sobrevivência tão pungente que os compele a atos absurdos. Tudo os obriga a se munirem da violência como único recurso que os impede de passar de atores para cenário. De carne com sangue pulsante para poeira e ossos embranquecidos pelo sol.
A trama em si é repetitiva. Acompanhamos esses homens em seu trajeto pelo deserto encarando dia após dia as doenças, perigos, fome e poeira, até chegar ao próximo destino onde irão mais uma vez saquear, destruir e violentar. A grande constante nessa história é a morte vil, com o abandono de toda a fé e esperança.
O enigmático juiz Holden, uma personagem absolutamente atípica de um homem gigantesco, sem cabelos num corpo albino, um homem culto em meio a toda aquela ignorância, artista e conhecedor de literatura, filosofia e falante de vários idiomas, serve para o autor como o receptáculo e a voz de todas as referências que ele desejava tomar como temas filosóficos e psicológicos nessa obra. Referências colossais a Milton, a Dante, a Goethe e especialmente à própria bíblia são desenroladas nas lições do juiz e nos debates que ele desencadeia ou protagoniza.
A narrativa bíblica e a dualidade entre o bem e o mal estão sempre presentes, especialmente no arco final do livro, em que o kid retorna ao protagonismo numa perseguição final em que as referências morais começam a perder o sentido para aqueles miseráveis buscando nada mais que a própria sobrevivência.
A estética da violência, do cenário e da linguagem permitem que a obra de McCarthy seja comparada à grande obra-prima da literatura brasileira, Grande sertão: veredas. Com um ambiente de homens brutalizados e um cenário desumanizante que exigem a violência como recurso inescapável, e com linguagens que se moldam de forma poética à secura desses ambientes, cada um desses livros remete a contextos de guerrilha, fé, sobrevivência e morte que são inseparáveis das Histórias de cada um dos seus países.