spoiler visualizareduardonunes 27/06/2018
Uma não-resenha
Por que alguém leria e recomendaria uma história de faroeste narrada por um bêbado mexicano e escrita por um porto-alegrense de 25 anos que nunca esteve no México?
Resposta: porque o livro é bom demais.
Areia nos Dentes foi lançado em 2008, pela Não-Editora. O não autor, Antônio Xerxenesky, não sócio da não empresa, sempre foi apaixonado pela cultura mexicana, por histórias de faroeste e de zumbis e um dia decidiu juntar tudo isso em um livro.
É o primeiro romance de Xerxenesky, o que significa que pode ser um pouco cedo pra puxar com tanta veemência o saco do autor, mas acredito que o risco de engano seja mínimo: o cara já é um grande contador de histórias e um grande escritor. Ou seja, ele não apenas consegue envolver o leitor com sua história, mas também sabe juntar as palavras com maestria, resultando numa prosa quase poética.
A história do povoado de Mavrak, uma quase cidade-fantasma perdida no meio do deserto, num lugar e numa época em que não fazia muito sentido perguntar se era Estados Unidos ou México, é narrada por Juan, um velho bêbado e nem um pouco confiável que vive em um apartamento perdido na selva urbana do Distrito Federal mexicano. Enquanto reflete sobre o vazio da sua vida, Juan decide contar (ou seja, inventar) a história de seus antepassados de Mavrak. Graças a esse recurso de metalinguagem, sabemos o tempo todo que tudo não passa de ficção contada a partir dos dias atuais — mas, mesmo assim, avançamos página após página para saber o que vem em seguida, tal a intensidade com que o enredo nos atinge.
Por falar em linguagem, o livro é uma mescla de gêneros narrativos que se complementam. Por meio do seu narrador/alter ego Juan, Xerxenesky brinca com diferentes estilos, contando sua história ora no formato de roteiro cinematográfico, ora como fluxo de consciência, ora bisbilhotando no diário de um dos personagens, ora traçando um paralelo entre o que dois personagens pensam ao mesmo tempo, ora perdendo um capítulo inteiro por causa de um vírus de computador.
O livro é tão bem amarrado que até o que não está nele funciona bem, como no caso do capítulo que, na vida real e não no romance, foi suprimido sem querer na hora de diagramar e acabou ficando de fora na impressão (não faz falta na comprensão da trama e prova que Xerxenesky é tão confiável quanto Juan, como ele mesmo conta no seu blogue).
Areia nos Dentes traz muitos dos deliciosos clichês que imortalizaram o gênero: a ética da valentia e da honra, a guerra entre dois clãs rivais (no caso, os Marlowes e os Ramírez), o deserto, os duelos, os índios, o xerife austero e o saloon com suas prostitutas, seus bêbados, seus jogos de pôquer e suas brigas que começam por uma besteira e acabam com um cara sendo morto a tiros.
Ah, e os zumbis.
Já na orelha do livro, Daniel Galera diz: "Se tem zumbis no meio, só pode ser bom". Quando falei de Areia nos Dentes ao colega e amigo Diogo Pereira, sua resposta foi muito parecida: "Bah, faroeste com zumbis? Não tem como ser ruim!" Realmente, não tem mesmo.
Os cadáveres que saem das entranhas da terra para se intrometer na guerra entre Marlowes e Ramírez acabam por encerrar a guerra dos mavrakianos contra o ambiente hostil em que teimavam em viver. Uma comunidade que vivia tão longe de tudo e tão perto do Nada estava condenada à morte. Nada mais justo que fossem os mortos os executores da sentença.
E nada mais real do que um final de romance em que carrascos se tornam réus e réus se tornam carrascos. A fantasia de estarem mastigando cérebros é só uma licença poética.
site: http://www.clicrbs.com.br/blog/jsp/default.jsp?source=DYNAMIC,blog.BlogDataServer,getBlog&uf=1&local=1&template=3948.dwt§ion=Blogs&post=244644&blog=31&coldir=1&topo=4254.dwt