Café & Espadas 21/07/2014
Resenha O Salmão da Dúvida
Douglas Adams morreu em fatídico 11 de maio de 2001. Redundante dizer que uma legião de fãs foi deixada ao relento, sem nenhuma esperança de voltar a ler uma aventura de Arthur Dent e seus companheiros peraltas em O Guia do Mochileiro das Galáxias ou até mesmo algum episódio perdido ou achado de Doctor Who como em Shada.
Tentativas não faltaram, claro. Tivemos o livro E Tem Outra Coisa... escrito por Eoin Colfer que é considerado uma continuação oficial da série. Mas a tentativa, como você pôde ler na resenha publicada aqui no blog, não foi lá uma das mais bem sucedidas, e se eu pudesse mudar o título da obra, mudaria para Não é Lá Essas Coisas... Mas essa é só minha humilde opinião sobre essa obra.
O que realmente importa é o quanto fiquei feliz e ansioso (e tenho plena segurança de que essa sensação se estendeu aos admiradores do legado de Douglas) quando a Editora Arqueiro anunciou o lançamento de uma obra póstuma de Adams. E não seria um livro qualquer, seria O Salmão da Dúvida.
Esse livro trata-se de uma coletânea de vários escritos de Douglas: palestras, discursos, entrevistas, comentários sobre tecnologia e seu avanço frenético, um ensaio filosófico sobre a não existência de Deus, relatos sobre a sua infância e seus problemas na escola, sua admiração e sua paixão pela arte em todas as suas formas e – como se isso tudo não já fosse suficiente- dez capítulos do conto O Salmão da Dúvida, que nada mais é do que uma história inacabada reconstruída pelo editor Peter Guzzardi, que teve todo o trabalho de juntar os “retalhos” escritos por Douglas de forma que formassem algo coeso. E temos também um outro conto, este protagonizado por Zaphod Beeblebrox, sua excelência, presidente da galáxia.
Na introdução temos a excentricidade de Adams exposta por alguém que conviveu diretamente com ela: o editor Stephen Fry. Era impossível não se empolgar e deixar fascinar com as ideias que borbulhavam constantemente na cabeça de Douglas.
Sua forma de enxergar a realidade - colocando os eventos mais banais em uma forma completamente nova e complexa - ganhava o seu requinte cômico quando ele a transmitia do seu jeito mais típico: simples e direto. Como quem diz “como você nunca pensou nisso antes?”. Sem prepotência. Somente para fazer o leitor rir com esse fato inevitável.
Nessa parte inicial do compilado, Stephen explica a origem do livro O Salmão da Dúvida, e todo o trabalho que ele teve em tentar reconstruí-lo. Então é altamente recomendável a leitura dessa introdução do volume, para que você possa entender melhor o que está em suas mãos.
Após a introdução, o livro se divide em outras três partes: A Vida, O Universo e E Tudo Mais.
Em A Vida temos os relatos referentes à infância e a adolescência de Douglas, onde vemos que ele teve, até certo ponto, uma vida escolar comum, com direito a todos problemas que atingem uma boa parte dos estudantes, como apelidos e outras chacotas pela sua altura e seu nariz. Ele ria consigo mesmo de tudo isso, e acho que essa é uma atitude que todos deveriam levar para a própria vida: rir de si mesmo às vezes é melhor do que sempre se vitimizar.
Foi nessa fase de sua vida que Douglas teve o seu primeiro contato com os Beatles. Ele narra com extrema empolgação e profunda admiração como o som dos fab four fez sua mente explodir e abrir seus sentidos para a arte em todos os seus aspectos. Além de tudo isso, temos o olhar de Adams sobre as efemeridades da vida e o comportamento humano e suas razões.
Já em O Universo vemos a atração incontrolável que o autor tinha pela tecnologia, e como ele passou de alguém que a usava como matéria prima para as suas piadas (devido as ineficiências eventuais dos avanços computacionais da época) para um consumidor voraz e especialista no assunto, chegando ao ponto de fazer algumas previsões como a internet wi-fi e o advento dos smartphones e seus aplicativos.
Temos também um texto longo onde ele discursa sobre a existência de Deus. Douglas era um ateu fervoroso, não desse tipo radical tão comum hoje em dia. É muito interessante ver como ele desenvolve o seu pensamento e como ele explana sobre a sua cosmovisão.
E finalmente temos E Tudo Mais. Nesse trecho derradeiro do livro temos o conto Perfeitamente Seguro, que é protagonizado por Zaphod Beeblebrox, e os dez capítulos de O Salmão da Dúvida, livro protagonizado pelo detetive Dirky Gently.
Douglas fala também sobre seus outros projetos, sua relação com O Guia e seu sucesso já consolidado, a experiência de escrever o livro Last Chance to See (que ele revela ser o seu predileto) que fala dos animais em extinção, e que foi escrito em parceria com o zoologista Mark Carwardine.
A edição da Editora Arqueiro seguiu o formato da usada em E Tem Outra Coisa... com alguns desenhos de elementos que são citados no livro, o título em alto relevo e orelhas que dão um charme especial para o todo. A revisão está melhor se comparada com a feita no livro de Eoin Colfer, mas os erros ainda são bem notáveis. Tirando isso, a diagramação e a qualidade do papel são ótimas, e o resultado final é muito bom.
Antes de finalizar essa resenha devo informar a você que está lendo que não citei nem sequer 10% de todo o material presente nas páginas de O Salmão da Dúvida. O livro é simplesmente divertido e hilário, no sentido mais concreto da palavra. A sensação que temos é que estamos em uma conversa particular com o próprio Douglas, e passamos a nos sentir mais íntimos dele quando o livro termina. Não recomendo a leitura em lugares públicos (como foi o meu caso) pois as risadas podem ser incontroláveis, e acredite, você pode passar vergonha.
Nunca pensei que poderia rir pela troca do segundo “A” na palavra MANUAL por um “E”. E isso é só uma das várias histórias narradas por Douglas em um livro que não é bem uma homenagem - a publicação pode até ser, mas o livro em si não é -, mas simplesmente Douglas Adams. Simples e puro. Em seu estilo inconfundível, nonsense e envolvente.
O único suplício é ter que fechar o livro e lembrar que ele não está mais entre nós aqui neste planeta praticamente inofensivo. Talvez morrer tenha sido a pior ideia que Douglas teve ao longo de sua carreira, e como seria os livros que ele ainda planejava escrever.
O Salmão da Dúvida é um eco póstumo da genialidade incomparável e singular de um autor que deixou mais que legado para os seus fãs, deixou um ensinamento precioso de que cada pessoa não deve passar pelo o mundo sem procurar entendê-lo, aproveitá-lo e melhorá-lo ao máximo, na medida do possível para cada um. Isso é algo que eu espero que persista por gerações.
O livro é espetacular, e indispensável para o acervo de qualquer fã do autor. Recomendo bastante a leitura.
“Até mais, e obrigado por tudo, Douglas!”
site: http://cafeeespadas.blogspot.com.br/2014/07/resenha-o-salmao-da-duvida.html