Gustavo Araujo 20/11/2014
Não é um livro sobre Snowden
Pouca gente ficou alheia à divulgação recente de que os Estados Unidos têm espionado sistematicamente empresas e governos do mundo todo, bisbilhotando desde ligações telefônicas até o tráfego na internet, incluindo sites, emails, fotos e, claro, redes sociais.
Trata-se de algo que muitos já desconfiavam, mas que ganhou as manchetes de todos os jornais ao redor do planeta depois que Edward Snowden, ex-integrante da NSA, a agência de segurança americana, resolveu vazar os documentos que comprovavam quão profundas eram as atuações dos espiões americanos.
Com tal contexto em mente, é impossível não se deixar fisgar por “Sem Lugar para se Esconder”, escrito pelo jornalista Glenn Greenwald, que conta como e por que Snowden resolveu partilhar com o mundo as ações pouco auspiciosas do governo dos EUA.
Nesse sentido, o livro começa muito bem, transformando-se em um page turner de primeira linha. Greenwald é um autor com intimidade no assunto. Escrevera livros e artigos sobre direitos humanos e sobre os excessos de governos diversos em nome da segurança. Em “Sem Lugar para se Esconder” seu tom é ainda mais pungente.
Nos primeiros capítulos, Greenwald conta como foi abordado por Snowden, que então se identificava pelo pseudônimo de Cincinnatus, como levou tempo a dar-lhe crédito e como finalmente se convenceu a instalar programas de criptografia que, enfim, permitiram a remessa do primeiro lote de documentos. O livro segue num ritmo vertiginoso, com Greenwald, agora convencido da gravidade das denúncias, solicitando apoio dos maiores jornais do mundo e frustrado pela falta de interesse inicial.
Quando finalmente encontra Snowden, então refugiado em um quarto de hotel em Hong Kong, Greenwald, com a ajuda da documentarista Laura Poitras, consegue, enfim, que o “Guardian”, de Londres, publique seus artigos e os primeiros documentos. A tensão crescente torna-se quase insuportável com as reações iniciais e com os desmentidos que logo se tornam ameaças veladas a Snowden e ao próprio Greenwald.
E é exatamente nesse ponto que o livro perde o fôlego.
Até o momento em que os arquivos de Snowden são divulgados, a narrativa segue vertiginosa, mal dando tempo para o leitor respirar. A partir daí, o que Greenwald faz é analisar, ou melhor, traduzir os documentos para o público leigo, demonstrando como a NSA, aliada a agências de segurança da Grã-Bretanha, da Austrália, do Canadá e da Nova Zelândia, espionaram e invadiram a privacidade de centenas de milhões de pessoas, com o apoio irrestrito de grandes corporações da telefonia e da internet, como Facebook, Google, Yahoo, You Tube, entre outras.
Grave? Claro. Gravíssimo. Só que mais parece a análise de um processo judicial, tal a quantidade de documentos. Sim, é de fato revoltante saber que aqueles que tinham o dever de proteger a intimidade das pessoas são os primeiros a invadi-la, sob a escusa de prevalência da segurança, mesmo quando se vê que muitos dos atos de investigação nada têm a ver com tal aspecto.
Mas, e o que acontecia com Snowden enquanto o mundo era bombardeado com os documentos que ele permitiu vazar? Greenwald não aborda esse lado com a profundidade desejada. Enquanto no início do livro a segurança de Snowden e seus motivos a princípio nobres são avaliados e descritos em detalhes, após a divulgação dos arquivos, pouco há sobre ele. Greenwald apenas informa ao leitor que Snowden conseguiu fugir para a Rússia, sem dar qualquer detalhe.
Por conta disso, o título do livro passa uma ideia errada. “Sem lugar para se esconder” não é um livro sobre Snowden, ainda que se refira bastante a ele. A narrativa abandona o protagonista e concentra-se no que ele produziu, sem aludir aos acontecimentos por certo interessantes que envolveram sua fuga para Moscou.
Se já existe frustração por conta disso – repito, em que pese a gravidade das denúncias – o livro padece de um certo narcisismo. Greenwald é um escritor competente e engajado, mas por vezes suas assertivas resvalam para uma auto comiseração injustificável, concentrando-se nas indesejadas e injustas repercussões no mundo do próprio jornalista. É nos momentos em que ele fala de si que o texto perde a força, ganhando ares de um diário de confissões coitadísticas. Infelizmente.
Quanto a Snowden, confesso que fiquei um pouco decepcionado com a abordagem psicológica que Greenwald faz dele. Vencida a desconfiança inicial, Greenwald passa a defender com todos os argumentos possíveis o fato de que Snowden só fez o que fez porque estava indignado com o nível de espionagem da NSA, que isso era errado e que as pessoas precisavam saber. Pode até ser verdade, mas custo a acreditar que alguém seja ingênuo a esse ponto. De mais a mais, é no mínimo estranho Snowden ter se refugiado justamente na Rússia, o país berço da NKVD e da KGB, órgãos governamentais dos mais repressores, mais invasivos e mais aterradores de toda a História.
Logicamente, nada justifica a superação de todos os limites de razoabilidade pela NSA americana. Penso que num mundo perfeito, todos os envolvidos deveriam ser responsabilizados. Claro, jamais serão. Não dá para ser inocente e pensar que, mesmo por conta das denúncias, os métodos vão cessar. Podem até ser suspensos por algum tempo, mas, no fim, tudo volta ao que era antes. Como alguém já disse, é o sistema.
Quanto a Snowden, penso que resta muito a ser esclarecido a seu respeito. Suas motivações soam não só pretensamente pueris, mas também milimetricamente editadas. É certo que há muita coisa não dita.
De todo modo, o livro de Greenwald é uma leitura que vale a pena. Senão como thriller político, pelo menos para saber com quem você está repartindo suas informações pessoais e como isso é utilizado.
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