Beluga 23/03/2017
‘As Aventuras do Bom Soldado Svejk’(lê-se Schweik) é um calhamaço tcheco sobre as aventuras do soldado titular durante a Primeira Guerra Mundial. De início, achei que fosse ter o mesmo problema que Dom Quixote: uma obra de tida como cômica cuja graça se perdeu com o contexto e o tipo de humor que apreciamos. Confesso que ainda não consegui ler a obra de Cervantes, mas não foi o que aconteceu com esse livro, definitivamente. Como Svejk foi originalmente escrito para ser algo informal, emulando a conversa das tavernas, ele não sofre por excesso de formalismo no vocabulário; é possível rir do livro, entender seu humor e compreender os muitos xingamentos utilizados. Ainda assim, é extremamente difícil avaliar criticamente uma obra como essa, uma vez que ela foi escrita com um contexto em mente e jamais seu autor pensou que ela poderia ser lida em outro continente, quase cem anos depois. Não dá para tomar o livro pelo que o autor se propõe porque simplesmente não dispomos de qualquer base razoável de comparação. Então novamente recorro ao que eu, pessoalmente, achei do livro: é bastante divertido.
Nunca fica claro qual é a do bom soldado: se ele é, de fato, um imbecil, ou é um grandioso dum sacana, que se diverte à custa do sistema e se mete no máximo possível de confusões de forma à evitar a Guerra Mundial que o cerca. Particularmente, opto pela segunda explicação, principalmente por conta do tratamento dado por Svejk à Baloun e ao subtenente Dub, onde ele demonstra mais malícia e esperteza do que seria possível caso fosse o completo idiota que pode parecer. Além disso, há o fato de que o livro tem fortes tons autobiográficos; boa parte das experiências narradas no livro transcorreram com Jaroslav, quando este era soldado na Grande Guerra. São feitas várias menções também às profissões que ocupou e as trapalhadas que fazia, como quando era redator de uma revista sobre animais mas fora demitido porque vivia inventando bichos novos. Jaroslav é claramente o que hoje chamaríamos de ‘troll’, e tenho cá para mim que Svejk é uma representação idealizada do autor: um sacana inveterado. O soldado, com sua enxurrada de exemplos inconvenientes para cada situação passa a aura real de um diálogo de bar, onde toda a história de Svejk lhe está sendo contada entre um caneco e outro. Parece muito que Jaroslav está de fato conversando com o leitor, e deu muita vontade de de fato conhecê-lo.
O livro, porém, é um relato cheio de terminologias militares que podem ser confusas, e entender como funciona a dinâmica de um exército naquela época certamente tornaria o livro bem mais apreciável. Isso não impede, porém, que a obra nos passe sua mensagem: a da brutalidade da guerra e a burrice da burocracia, que acaba por ser a principal antagonista de Svejk durante toda a história, fazendo-o rodar meio mundo por conta de mal-entendidos. Não surpreende, também, que o livro tenha sido proibido tantas vezes, dada sua crítica mordaz aos regimes anti-democráticos e sua zombaria constante das autoridades. Não surpreende que Jaroslav tenha sido um anarquista,mesmo tendo fundado um partido, cujo nome era ‘Partido do Progresso Moderado Dentro dos Limites da Lei’. (É sério).
Assim, Svejk é uma obra pouco lembrada hoje em dia, mas com uma mensagem extremamente importante, bom humor e bons ‘descendentes’: Joseph Heller, autor de ‘Ardil-22’, diz que não teria conseguido escrever sua obra-prima sem ter lido Svejk, e Bertolt Brecht, ídolo de muitas camisetas por aí, colocou o livro como uma das três principais obras da literatura do século XX. É dele também a famosa adaptação teatral, que ainda não li para evitar misturar as duas coisas. O pior de tudo é que Jaroslav foi tão sacana que sequer terminou o livro, tendo morrido antes. Ele simplesmente acaba, sem mais nem menos, no meio da Guerra, sem nem terminar o capítulo propriamente. Extremamente digno do bom soldado. ‘Humildemente, meu senhor…’
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