spoiler visualizarRonaldo Thomé 30/07/2020
Voltando Incessantemente ao Seu Tormento
Incrível!
Allen Ginsberg fez fama e é lembrado, até hoje, como o poeta louco e um dos porta-vozes da já distante Geração Beat, um movimento literário de imensa repercussão (tanto negativa como positiva) nos Estados Unidos. Seus efeitos se fizeram sentir por todo o mundo nas décadas do pós guerra americano; embora não tenha sido um fenômeno que se estendeu fora de seu país, deixou grande influência no modo de escrever em todo mundo, inclusive por aqui.
Ginsberg foi um dos pioneiros dessa geração, ao lado de Jack Kerouac e Neal Cassady; a literatura que produziram é altamente intensa, baseada em experiências e fatos cotidianos, porém contada de forma bastante pessoal e simbólica. Ginsberg, por exemplo, tinha grande influência de autores como Apollinaire (simbolista), Blake (romantismo), e nota-se de fato grande presença de símbolos e imagens no seu texto.
No entanto, o trabalho de resgate no prefácio e notas de Cláudio Willer nessa edição nos prova: reduzir a obra desse poeta a uma atitude simbólica e subjetiva é profundamente errado. Pelo contrário: Ginsberg buscava, por meio do caos literário, dar voz ao pensamento desnorteado de sua geração, chegando às últimas consequências. Além disso, no caso deste autor, ficamos sabendo (por Willer) que sua infância e juventude foram problemáticas - o pai de Ginsberg era professor universitário e a mãe, militante de esquerda que passou parte da vida em manicômios.
Willer sustenta que Ginsberg buscava, em sua literatura, juntar as duas facetas do mundo em que convivia: o ambiente erudito e formal com a vida desregrada e insana (o autor provavelmente identificava no comportamento materno grande parte do que acontecia com a juventude de sua época). Isso dá outra dimensão, muito mais profunda, ao trabalho de Allen e retira um pouco da visão do profeta, o xamã louco, que ele adquiriu com o tempo.
Quanto se compreende isso, é possível tomar dimensão da verdadeira obra dos Beats e de Ginsberg. Por meio da expressão livre, da escrita automática, do uso de substâncias, tudo - absolutamente tudo - se tornava, para eles, objeto de uma experiência literária. As questões sociais, psicológicas e culturais, a situação política, a própria vida dos envolvidos era uma espécie de matéria prima para o que escreviam; portanto, não se trata de mera "piração" ou surto de um drogado. Era apenas uma forma de se perceber e vivenciar a realidade, transposta para o papel. Nada de arte pela arte, e sim vida e arte trocando de lugar.
Poemas como Uivo e Kaddish (autobiográfico) ganham maior expressividade quando os entendemos assim, e tornam-se também (muito) mais perturbadores. O inferno particular do autor, caótico e imprevisível, ganha as páginas como um instante fotografado. Em suma, qualquer um que escreva poesia contemporânea deve muito a essa geração. Quando lemos, por exemplo, "Eu vi os expoentes da minha geração destruídos pela loucura", é impossível deixar de se sentir mal ao descobrir quem eram aquelas pessoas, como elas viviam, como o sistema as tratava.
E, claro, lembrar que muitos dos problemas deles também são nossos. Este é um livro especial, que pode ser lido como uma fantasia surrealista, ou uma crônica realista de uma geração. Depravados e loucos, sim, mas mudaram o mundo com seus escritos.
William Carlos Williams dizia sobre este livro: "vamos atravessar o inferno". Pode ser, mas aqui o que encontramos é a mente de um homem, buscando a lucidez na sua insanidade - e voltando incessantemente a seu tormento.
Indicado para: qualquer um que queira entender a literatura contemporânea - tanto para aquele que já a conhece e gosta, quanto para aquele que não a aprecia (o conceito por trás das obras de Ginsberg pode fazer toda a diferença).
Nota: 10,0 de 10,0.