PorEssasPáginas 27/10/2014
Resenha: a cor do leite - Por Essas Páginas
Forte e sensível, belo e visceral, feminista e humano. Esses são apenas alguns dos muitos adjetivos de a cor do leite (sim, em minúsculas), de Nell Leyshon e da Editora Bertrand Brasil. Quando recebi esse livro como uma cortesia da nossa parceria com o Grupo Editorial Record, apesar de ter considerado a capa belíssima (aveludada, deliciosa de tocar) e a sinopse instigante, acabei deixando-o para depois, devido às leituras de parceria. Grande erro: a cor do leite é um livro para ser lido imediatamente, com urgência, e acabou se tornando um dos meus favoritos na estante.
O livro, narrado em primeira pessoa por Mary, uma menina de 15 anos, se passa em 1831, uma época na qual as mulheres não tinham valor algum. Mary é a mais nova de quatro irmãs, e o pai das meninas nunca as perdoou por nascerem mulheres. Ele as obriga a trabalhar na roça de sol a sol, sem descanso, e os dias se sucedem iguais, sempre cansativos, muitas vezes com castigos físicos. Mas Mary está acostumada com essa vida, aceita-a como sua com uma maturidade e resignação extraordinárias para sua idade. Sempre de cabeça erguida, Mary está acostumada a dizer o que pensa, até mesmo para o pai bruto, e por isso sofre toda sorte de castigos e humilhações, mas jamais abaixa a cabeça, apesar de ser obediente. A personagem mostra que há uma grande diferença entre obediência e submissão. Talvez sua única felicidade seja realmente as conversas e a companhia com o avô inválido, que tem a língua tão ferina quanto Mary, o que rende diálogos excepcionais durante o livro.
esse é o meu livro e eu estou escrevendo ele com as minhas próprias mãos. Página 7.
Essa é a primeira frase do livro e isso já diz muito sobre a obra e sobre Mary. Todo o livro é em letras minúsculas, repleto de erros de concordância, o que por si só demonstra a grande sensibilidade e competência da autora, que se colocou na pele de uma menina humilde e semi-alfabetizada que resolveu escrever sua história com próprias suas mãos. Em uma época onde as mulheres não tinham voz, a escolha narrativa é brilhante e extremamente significativa: Mary, a corajosa, honesta, direta e afiada Mary, assume a tarefa de escrever sua história para, assim, dizer a verdade, sabendo que só ela poderia fazê-lo.
Mary é obrigada pelo pai a trabalhar na casa do pastor. É claro que ela não vê a cor do salário, que é integralmente repassado ao pai, e obviamente ela não tem escolha a não ser ir para uma casa estranha, afastando-se da família. Alguns podem dizer que isso foi bom para ela, afinal, ela tinha roupas limpas e comida quente na casa do pastor, e até mesmo a companhia amável da esposa adoentada do religioso, que acaba por nutrir um grande carinho pela menina. Mas essa não é a questão: o fato é que Mary não queria isso, simples assim. Ela queria continuar na sua casa, na sua cama, com a sua família, por mais que a vida fosse dura, por mais que as coisas não fossem perfeitas. Mas Mary não tem voz nem escolha simplesmente pelo fato de ser mulher. É claro, que, sendo uma menina de gênio e opinião forte, Mary obedece ao pai, mas não sem dizer tudo o que pensa, não sem lembrar a cada minuto ao pastor que ela não queria estar ali. E algumas vezes você até pensa que Mary é impertinente, que ela teve sorte, mas aí vem o livro e dá um grande tapa na sua cara.
às vezes é bom ter lembranças porque elas são a história da nossa vida e sem elas não ia ter nada. mas tem vezes que a memória guarda coisas que a gente não quer nunca mais ouvir falar e não importa quanto a gente tenta tirar elas da cabeça, elas voltam. Página 163
A obra é ao mesmo tempo deliciosa e dolorosa de ler. Deliciosa por ser repleta de cenas inteligentes e sacadas brilhantes, por Mary ser essa personagem incrível, complexa e real, que encarna a dor de ser mulher com maestria, que exala sabedoria em sua aparente ignorância. Dolorosa pela vida repleta de sofrimento e a dor pungente de Mary não ser mera ficção; e não é só por isso ter acontecido em uma época que já passou, mas sim por isso continuar acontecendo. É tolo quem pensa que as mulheres não são mais oprimidas, que não há preconceito, violência e rejeição contra um ser humano apenas por ele ser do sexo feminino, mesmo na nossa suposta época moderna. E aqui arrisco uma opinião pessoal: feminismo é essencial e, se você acha que não é feminista, pense de novo, ou será que você não concorda, por exemplo, que uma mulher pode e deve receber o mesmo salário que um homem se faz a mesma função que ele numa empresa? Bem, isso é feminismo, meu caro e minha cara. E a cor do leite é um livro feminista da primeira à última linha.
Leitura intensa e sensível, a cor do leite certamente emocionará até mesmo o leitor mais duro. Impossível não se impressionar com a jornada de uma personagem tão rica e extraordinária como Mary. Recomendo do fundo do coração que leiam; esse livro é capaz de mudar sua visão de vida e vai tocá-lo profundamente.
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