gabriel 02/10/2021
Perplexo
O livro é bom, mas pune muito o leitor. Ele é provavelmente o livro mais arrastado que eu já li na minha vida. Mesmo assim, ele dá uma decolada no final e o último capítulo é uma das melhores coisas que eu já li recentemente. Poucas vezes me senti tão dividido em relação a um livro.
A leitura em si não é agradável uns 90% do tempo, ocasionalmente algumas das frases funcionam maravilhosamente bem, mas você precisa vencer montanhas e montanhas de parágrafos que não dizem nada com nada e só ficam se repetindo. A história tem um ar de incoerência, que ora é mais sutil, ora é mais claro, e ela joga com isso de maneira muito habilidosa. É um livro que mexe com as expectativas, o que é positivo. O problema é que é um parto pra ler.
No geral, posso dizer que estou satisfeito, e fico contente de ter vencido as partes mais trabalhosas, ou simplesmente chatas e mal escritas. Donna é malandrinha; sinto que fui enganado por ela. A parte final do livro mostra que ela tem domínio narrativo e literário, muito obrigado. Por que, então, quase todo o livro é escrito literalmente de qualquer jeito? Quis criar um efeito? Contratou um "ghost writer" ao contrário (só pra escrever as partes pra encher linguiça)? Ou simplesmente ela teve que apressar a coisa a partir de um deadline apressado e cobrança da sua editora? Num mundo ideal, acredito que seja o primeiro caso. Mas é muito mais provável que seja o último.
O livro fala de um garoto que perdeu a mãe numa explosão no museu (Metropolitan Museum of Art, de Nova Iorque) e a história gira em torno disso, da perda da sua mãe e todas as consequências. Gira também em torno de um quadro - O Pintassilgo - de um pintor holandês do século XVII. Só que é meio que isso, fica girando, girando e girando em torno disso... e não sai do lugar. O que não é totalmente negativo, há uma ambiguidade e um ambiente de loucura e estagnação. Mas o preço a se pagar por isso é um livro muito chato e muito difícil de ler.
O romance dele com a menina (sem mais detalhes para evitar spoilers) não convence quase nunca. Na verdade minto, quase pelo final ele começa a convencer, mas me venceu mais pelo cansaço, tamanha a insistência nesta garota que ele só viu uma ou duas vezes na vida. No final, até eu tava quase me apaixonando pela tal garota, o que causou um efeito interessante. Mas no geral, são partes que apenas arrastam, não convencem, e completam o ar de incoerência do livro (o que é parcialmente justificado por detalhes que não cabem aqui revelar).
O livro toca um tema muito interessante, que é o trauma, e como a vida fica paralisada a partir deste trauma. Theodor (o protagonista) é um eterno garoto de 13 anos, mesmo depois de mais velho. Ele nunca parece evoluir, e sua relação com as drogas parece expressar muito bem isso. Ele é um eterno garoto drogado revivendo sua vida em Las Vegas, com o amigo recém-conhecido (Boris), um esquisitinho que aparece e reaparece do nada, um sujeito excêntrico que já viveu muitas vidas e fala muitas línguas.
O ponto forte do livro (mas que varia em alguns momentos, como aliás tudo nele) é a localização, achei que Nova Iorque ficou muito bem localizada e descrita em diversos momentos. O contraste entre o simpático e pitoresco Village, e as regiões mais ao norte de Manhattan (mais "engomadinhas", digamos assim) é bem interessante. São vários endereços fornecidos, o que hoje em dia pode gerar a curiosidade de você dar aquela fuçada no Street View, o que pode ser bem legal.
O livro também ganhou alguns pontos pra mim quando ele muda pra Las Vegas. Achei a escolha dessa cidade muito feliz: em vez de ele mudar para o cafundó dos judas, alguma cidade americana que ninguém nunca ouviu falar, ela apela para o imaginário popular. Dificilmente o leitor não sabe o que é Las Vegas. O contraste com o cinza/outonal de Nova Iorque é bem interessante e cria ótimos momentos. Momentos esses que vão meio pelo ralo, quando ele simplesmente volta pra Nova Iorque do nada, zerando o jogo, mas tudo bem.
Um livro difícil, arrastado, que trabalha muito com a imagem de "antiquário", e o livro é bem isso mesmo, um monte de tranqueira atrapalhando a leitura. O que, na verdade, cria a ideia interessante de o tema se adequando à forma, mas que na real só deixa a leitura muito desprazerosa. Eu acho que seria um livro muito melhor se ela limpasse esses momentos, fizesse um texto menor e mais focado; de todo o modo, há um efeito interessante quando isso fica em contraste com o ótimo capítulo final, proporcionando uma sensação de alívio, ou até de libertação.
Outro trunfo do livro são os momentos em que eles falam de marcenaria, móveis antigos e reparos, apesar de isso também arrastar bastante a leitura em vários momentos, gera boas passagens e a sensação de prazer e fascínio por estes móveis é palpável. Lembrou um pouco algumas cenas da série "Breaking Bad", em que um dos protagonistas, quando está preso, sonha com trabalhos de marcenaria. Então eu acho que há uma associação disso com uma certa "pureza" que é bem interessante.
A autora insiste muito em algumas coisas e quer te convencer na marra, não há uma construção muito sutil de alguns pontos. Ela força a mão e faz você aceitar certas teses do livro apenas "porque sim", ela é autora, portanto ela é o "Deus" do livro, ela quis assim e pronto. Isso deixa o livro também bem desagradável. (Por exemplo, dentre outros: o romance dele com a menina). Fora que o livro se torna deprimente quando ele fica, sem perspectiva de fim, chorando a morte da mãe. Torna o livro indelicado, pois em vez de simpatizarmos com ele, o odiamos pela simples chatice de ficar lamentando isso o tempo todo.
A Donna tem a detestável mania de interromper os diálogos para mencionar um gesto que o personagem faz durante o diálogo. Exemplo: blablablá - cocei o meu rosto com as costas da mão, como fazia o pai de Fulano em 1715 - e blablabá blablablá. Ela faz isso o tempo todo e quebra muito o texto. Os diálogos, aliás, são no geral muito mal escritos, e achei isso um dos pontos fracos do livro. É um livro com boas (e ocasionais) passagens, mas com péssimos diálogos. Longos, chatos, sem dinâmica, forçados... ruins realmente.
E é um livro com ótimo final, realmente achei que valeu a pena atravessar o "oceano" de texto (muito atravancado, pesado em descrições e bastante enfadonho) para poder chegar até lá. Poderia ser mais levinho, porém é um livro com muita personalidade. A história em si (em termos de enredo) é bem magrinha e pouco interessante, e o livro não te puxa em nenhum momento, ele não tem ritmo, não tem equilíbrio. É só uma pasta sem forma e rasa, de descrições atrás de descrições, uma em cima da outra, apostando muito alto que o leitor se interesse por isso.
E eu não vou nem ficar falando das incongruências, achei que elas fizeram algum sentido dentro da proposta do livro, mesmo assim elas geram um incômodo, pelo desprezo quase que total pela verossimilhança. Alguns breves exemplos: ele leva um cachorro numa sacola de Las Vegas a Nova Iorque (viajando de ônibus), o cachorro magicamente fica quietinho; ou então um personagem reaparece do nada em plena Nova Iorque, e magicamente eles se encontram na rua, numa das maiores cidades do mundo. Eu nem mesmo encontro o meu vizinho de condomínio, que dirá andando assim na rua do nada.
Mesmo assim é uma leitura recomendada, tem um bom final (e realmente, eu achei ele muito bem escrito, destoando do resto do livro), a característica arrastada e ambígua dele talvez seja proposital, o que deixa o leitor com a "pulga atrás da orelha", sentindo-se enganado pela autora. É um livro, então, que me deixou muito dividido enquanto leitor, tornando a experiência pra mim um tanto confusa e intrigante.