gabriel 03/01/2022
Excelente coletânea de ensaios
Gostei bastante desse livro, é inegável a habilidade literária da escritora americana bell hooks (pseudônimo de Gloria Watkins, que ela propositalmente grafa em minúsculas), inclusive este foi um dos aspectos que mais me surpreendeu, pois os textos dessa área do conhecimento (sociologia, teoria crítica, estudos culturais) possuem um ranço bem desagradável, com aqueles vícios de linguagem típicos da área. Aqui a autora foge bem dessas armadilhas e entrega um texto limpo, agradável e sedutor. É uma leitura incrível e ela sabe conduzir as ideias de maneira envolvente, quando você notar, já está perdido no meio das letras dela (e não quer sair mais).
Como o título já sugere, o foco dos seus ensaios é a educação, sempre tomada de maneira crítica e com bastante influência do educador brasileiro Paulo Freire. Este último aparece em vários momentos, seja de maneira explícita (como, por exemplo, em um dos ensaios, em que ela relata um encontro com ele), seja de maneira indireta, principalmente através da sua ideia de "educação bancária". Outro foco é o tema da raça, importante para a autora (negra e militante, tendo crescido no Sul racista norte-americano), assim como o feminismo e, de maneira muito menor, a questão de classe.
Só achei que algumas questões foram tratadas de maneira muito superficial, em nenhum momento há uma crítica politizada, que aborda questões "macro" da política. Não há, por exemplo, geopolítica, economia, nem questões sobre os governos. Ela fala de imperialismo em um dado momento, mas é somente isso, o assunto não é aprofundado ou relacionado com os temas discutidos, é apenas mencionado de passagem. Há um ensaio interessante sobre questões de classe, mas parece que ela o fez apenas para "equilibrar o jogo", em pouquíssimos outros momentos da seleção estas questões aparecem. É uma pensadora, portanto, quase que totalmente comprometida com a questão racial somente, e com o feminismo de maneira ambígua (na medida em que ele é branco e classista, ela assume o seu posicionamento crítico). De toda forma são questões importantes e que merecem ser trabalhadas.
O ensaio é um gênero que esta autora domina de maneira bastante rara, difícil ver um autor tão à vontade nesse tipo de texto. Utilizei uma estratégia errada de leitura no entanto, que foi ler tudo na sequência, de maneira relativamente rápida: creio que, através de uma leitura mais espaçada (e pausada), o texto seja melhor aproveitado. Os ensaios são independentes entre si e podem ser lidos em qualquer ordem, a qualquer momento.
Um dos últimos ensaios surpreende ao falar sobre o erotismo, expandindo o conceito para uma espécie de "passionalidade" tomada de uma maneira geral, benéfica. A separação mente e corpo, colocada na conta de uma certa "tradição ocidental", é uma gambiarra filosófica jamais aprofundada, mas como estamos no campo do ensaio cultural e não da filosofia, é uma ideia que pode se sustentar e que leva à reflexão. O afeto é um subtema que permeia todo o livro e que torna o seu pensamento bastante atraente.
A grande moral da história é que hooks é uma pensadora habilidosa, com uma escrita chamativa, não é exuberante mas seduz. É uma escrita envolvente e agradável, e até mesmo por isso, é preciso um certo cuidado para manter um mínimo distanciamento crítico. Não porque se deva implicar gratuitamente com a autora, mas para não se deixar levar no "bico", ou até para entender de maneira mais precisa os pontos levantados pela autora. Muitos autores com essa característica de agradabilidade merecem a mesma ressalva. É muito fácil se deixar encantar pelo texto.
Outro tema muito presente, e que está em praticamente todos os ensaios, é um profundo anti-academicismo. A autora é fortemente crítica ao universo acadêmico, e eu pessoalmente consegui concordar com a maioria das suas críticas. Espécie de mundo intelectual próprio e com ares de confraria (leia-se, um clubinho fechado elitista), é um mundo que se reúne em volta de jargões e hábitos que visa a construir (e manter) hierarquias. Achei as críticas na medida e bastante necessárias, provocando importantes reflexões.
Em nenhum momento ela fala em superação das desigualdades e das diversas opressões (racismo, machismo e outras, mas principalmente as duas primeiras neste livro dela) por via da transformação social. O foco é cultural e comportamental, tomado de maneira individual. Isso foi um pouco desanimador, pois me pareceu um foco despolitizado. De toda forma, ainda assim são pensamentos muito valiosos.
Este livro faz parte da nova coleção "Os Pensadores", agora na mão da Folha de S. Paulo. Não quero entrar em detalhes sobre as opções dos editores, mas está muito clara a forte mão política na seleção dos livros. Muitos dos textos e autores das coleções anteriores (que circulam largamente aí pelo país e que são facilmente encontrado em sebos a preços baratos) foram diluídos ou retirados. Parece que, para compensar tal opção, eles adicionaram uns autores "da moda" (como a própria bell hooks), como um meio de disfarçar isso. De quebra, temos que aguentar economistas de segunda linha, como o irrelevante Mises (que nomeia um importante think tank no país) e Hayek, que faz parte da famigerada "Escola Austríaca". São pensadores que valem ser conhecidos, mas que revelam opções políticas do Grupo Folha; o que é natural, para quem conhece o histórico deste grupo.
Os livros anteriores da série eram mais bem trabalhados, continham notas dos tradutores que justificavam certas escolhas e tinham textos mais aprofundados. Isso, além de prefácios que, em muitos casos, se tornaram clássicos por si só, redigidos por especialistas com longo histórico de pesquisas no autor. Você era conduzido por mãos seguras. Aqui, nem uma apresentaçãozinha mequetrefe teve. Não sei se isso se repetirá nos demais textos da série, no entanto.
De qualquer forma, o texto em si da hooks é ótimo, e para quem tem interesse na área de pedagogia ou licenciatura, é um material imperdível, vai ser muito rico em reflexões. Foi uma ótima companhia aí para o meu fim/começo de ano, o texto é de um estilo agradável e com ideias surpreendentes, e que provoca e amplia debates.
O texto de hooks é bastante hábil, de repente você está ouvindo uma história pessoal da autora, para aí no segundo momento cair num conceito complicado e acadêmico; e isso, sem nem sentir o baque, o que é prova da excelente escritora que ela é. Para além dos educadores, o texto pode ser interessante para quem está entrando no mundo acadêmico, para entender que este mundo pode ser mais espinhoso e exclusivista do que se imagina. Importante, então, para manter um tom crítico, além da sanidade mental.