Rosa Santana 08/02/2011
O Forte – Adonias Filho, Bertrand Brasil, 12ª edição, 154 páginas
Não conhecia nada de Adonias filho, eu, por mais de vinte anos, professora de Literatura Brasileira de segundo grau, e, também, do curso de Letras... Sinto-me em falta com a literatura brasileira, com o autor e com meus ex-alunos, porque não lhes falei nunca dessa maravilhosa capacidade narrativa de Adonias. Eu, portadora de um diploma de Letras e, mais: de uma pós-gradução lato sensu e de um mestrado em Teoria da Literatura...
Em seu livro “Angústia da Influência” Harold Bloon nos diz que, acerca dos grandes temas, tudo já foi dito, daí a angústia dos escritores atuais. O que mais dizer sobre, por exemplo, o amor, tema tão sobeja e magistralmente cantado por, entre outros, Willian Shakspeare? O que resta aos que o precederam? Como superar o que já está entoado e encanta leitores de todo o mundo? A resposta, continua Bloon, é a maneira de dizer, já que nada mais resta a ser dito, cabe aos demais mudar a forma.
E é isso que faz Adonias Filho em “O Forte”. Para uma história banal, ele cria uma forma inusitada de contar. Assim, o que lemos é um desfile de frases muito bem construídas, e que, de certa maneira, desconcerta o leitor, visto que o que está lendo escapa do convencional... Cabe a ele ler mais de uma vez, para captar o sentido... Como na vida: quantas vezes o sentido dos acontecimentos se nos escapa? Quantas vezes “lemos” e “relemos” os fatos que nos chegam sem que, contudo, lhes percebamos o porquê?
História comum: Tibiti, personagem central, filha de Damiana e de Michel, neta de Olegário, cresce em companhia da mãe, pianista negra que se encanta com Michel, um europeu também dedicado à música, e, além disso, à bebida. Vão morar juntos, geram uma filha. Mas pela violência de Michel, se separam e vão, mãe e filha, para a casa de Olegário. Um dia, bêbado, aparece o pai, para pegar a criança e levá-la para si. Olegário, então, já indignado com tanto desprezo, violência e desrespeito, assassina o europeu que se encantara com a negra, gerara-lhe uma filha e a abandonara. Detido, cumpre pena no forte. Então conhece Jairo, a quem conta histórias e mais histórias, as mais variadas. A quem conta, também, sobre a neta, Tibiti. A ela, quando vai para sua companhia, também conta sobre Jairo, e, ao morrer, o deixa “de herança” à moça.
Assim, o que o leitor lê é, além da história do amor de Olegário à família, à neta, ao forte, é a história do amor de Jairo e Tibiti. Amor preparado sobretudo pela palavra, precedido por ela. Porque, por essa via, o avô teceu o encantamento na cabeça dos futuros amantes de tal forma que, quando se encontram pela primeira vez - casados, ambos - já se sabem apaixonados... É a palavra que Adonias celebra, é à sua força que ele se dedica. A narrativa de Olegário é tão poderosa quanto a de Adonias. Em ambas, a palavra, o discurso narrativo seduzem: nesta é o leitor que se vê detido entre suas teias; naquela, os jovens personagem Jairo e Tibiti.
A narrativa é totalmente descontínua, cheia de cortes e superposições, porque “os acontecimentos, observados da perspectiva da memória, estão longe de obedecer a um calendário frio e fixo”(...)*, o que torna o “resultado literariamente mais incisivo, psicologicamente mais convincente, humanamente mais verdadeiro.”**
TRECHOS:
. “As mãos não eram dele porque ele já não era de si próprio. Não pesavam, as mãos. Leves, assim ela as sentiu, pássaros nos ombros, temeu que voassem. (99)
. “Renovaram-se os encontros, ocultavam-se nos jardins distantes, nas praias desertas, dois fugitivos. Uniam-se mais, dia a dia, enquanto ele se sentia em casa como um ausente. Os nervos, no começo, ainda resistiam. Vidros depois, vibravam aos gritos dos filhos, trepidavam com a voz de Ana Teresa. Os móveis, os tapetes, os quadros. Tudo aquilo agredia, cansava, era como as grades de ferro para Olegário. E dentro da própria casa, única vida em seus olhos, Tibiti ocupava o espaço inteiro. Falava, respirava o cheiro de alecrim, Tibiti existia. Provocava nele o desejo, aquela necessidade de com ela misturar-se, carne tão dele quanto sua própria carne. (...)” (111)
. “Fome, nela e nele, todos os sentidos têm fome um do outro. O tato, a vista, o ouvido, é a fome. Apertam-se, os lábios roçando as faces, uma só respiração nos dois corpos.” (118)
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*As citações foram retiradas do prólogo de “Corpo Vivo”, escrito por Eduardo Portella. In: Corpo Vivo, Bertrand do Brasil, 32ª edição, página 8.
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