Michele Soares 26/07/2022
bundas, coxas e outras coisas.
Que livrinho! Precisamos dedicar um momento das nossas vidas para conhecer o Drummond erótico. Em 'O amor natural', o amor-sentimento ? presença marcada nas faces outras da sua poesia ? está abolido. O amor eleito como único tema do livro é só desejo, é todo corpo, é todo sexo. Também é um desejo exclusivamente masculino, vale a pontuar, e o sexo retratado, quase sempre o heterossexual ? é só lá de vez em nunca que uma lacuna, que uma supressão das pessoas envolvidas e o retrato do ato deixam margem para leituras e reinvidicações outras, com outros personagens e tipos de relação.
Uma coisa muito legal de perceber foi como alguns temas que preocupam e atravessam a lírica não erótica de Drummond ? como a morte, o divino, a passagem do tempo, a finitude, a dissolução ? e que são parte das suas 'inquietações' de sempre também aparecem aqui, mas como constelações subjugadas a esse centro de gravidade maior que é a necessidade do tema erótico. A morte aqui não é (ou melhor, não é só) a morte fúnebre com M maiusculo, mas é a "petite morte" dos franceses: agora ela aparece sob a roupagem do desfalecimento causado pelo orgasmo. Do mesmo jeito, o divino também está por toda parte, inclusive no sexo, e a paz suplicada no Agnus Dei agora é a paz pós-coito. Me passou pela cabeça que nesse livro Drummond faz da sua poesia uma lírica muito mais aparentada com uma visão de mundo grega ? que integra o sexo ao divino a ponto de ver uma deusa que atue nessa esfera e que faça os próprios deuses transarem ? do que com uma visão de mundo judaico-cristã, que aprendeu a abolir o sexo como pecado quando fez de Maria uma mãe virgem, elegendo a pureza como o essencial. No sexo pintado por Drummond, entretando, o cristão e o profano se misturam e o próprio sexo é puro: fala-se várias vezes na castidade do ato sexual. Além disso, a despeito das teferencias mais diretas a Platão e Camões, o primeiro poema me soou basicamente uma releitura da Teogonia, que, não por acaso, é um poema que tem toda a sua primeira parte organizada por encontros sexuais dos deuses que vão formando gerações, construindo e povoando o mundo ? a diferença essencial é de que em Drummond o sexo não se desdobra para além de si mesmo, ele não gera nem pode gerar prole e isso está posto em um dos poemas de uma forma maravilhosa, quando o eu-lírico lamenta que a transa não tenha lhe gerado um filho. A fala é paródica, mas deixa ver um programa poético sério que organiza o livro: falar do sexo sem o seu desdobramento pra qualquer coisa além de si mesmo.
E aproveitando o fio, em termos de forma e de tom, a paródia é uma constante que se identificar, como quando Drummond brinca com a imagem do pastor na poesia pastoril ou com a tradição de poesia medieval cristã. A dama, a senhora da lírica medieval não é mais a dama inacessível e distante, mas ela está aqui, está muito perto e está tirando a roupa. Ainda sim, o paródico não implica uma leveza sem consequência, como a de um livro como "A falta que ama", justamente porque, como antevi, à contraluz dessa leveza aparente, Drummond leva o seu objeto central ? o desejo ? muito a sério, seja para falar com gravidade do desejo que nunca teve a oportunidade de se cristalizar em gesto e ato sexual e que continuou sendo desejo/falta pra sempre, seja pelo ato de escolher com muito cuidado as imagens poéticas para falar de um ou de outro órgão sexual, até o ato de dedicar formas fixas e solenes como o soneto, por exemplo, para falar de uma bunda feminina ou de usar uma dicção elevada e arcaizante para de dirigir a uma prostituta. O rebaixamento e a elevação são deliberados e o que parece cômico-paródico, é bastante sério também.
Uma última notinha: depois da metade do livro eu tive a impressão dos poemas estarem sendo repetitivos e o sentimento é justificado ? a certo momento pode parecer que estamos lendo variações de uma cena e isso talvez possa se explicar justamente porque estamos lendo, no mais das vezes, sobre uma única cena, que é a do coito. O sexo de penetração não é o único cantado pela persona poética, mas, no mais das vezes, ele é bastante cantado ao longo do livro e, quando as mesmas palavras voltam, quando as mesmas imagens voltam, elas voltam como partes de novas unidades, de novas formas, de poemas que lembram uns aos outros, que formam uma família, mas sem serem os mesmos exatamente e por isso o espírito de variação talvez atravessando O amor natural. Mover um pouquinho o ângulo de observação é formar uma nova imagem do sexo, é encontrar na cena um novo traço ? é encontrar nos amantes, ora deuses, ora animais ou tudo ao mesmo tempo. Isso é que é uma das coisas imperdíveis do Drummond erótico que gostei bastante e recomendo a todas e todos conhecer.