Ana Aymoré 24/02/2019Bataille entre Eros e TânatosEm 7 de maio de 1922, o público que assistia às touradas em Madri testemunhou, horrorizado, a morte do toureiro Manuel Granero, atingido por uma chifrada do touro Pocapena em seu olho direito. Entre os espectadores da tragédia, estava um jovem e desconhecido funcionário da Biblioteca Nacional da França. Quatro anos depois, em meio a um quadro de intensa crise emocional, por incentivo de seu psicanalista, o arquivista, chamado Georges Bataille, escreve a novela Histoire de l'oeil, publicada em 1928 sob o pseudônimo de Lord Auch. Daí e até o fim da vida, marcada posteriormente por uma carreira de renome como ensaísta, Bataille nunca permitiu que seu livro de estreia fosse publicado em seu nome.
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Mas não se pode duvidar de que a reserva de Bataille fosse resultado não de uma inferioridade da obra em relação aos escritos posteriores do autor, mas justamente de sua inegável carga autobiográfica. Ela consiste, de fato, na emergência do eu mais profundo - o id psicanalítico - por sobre as camadas dos desejos, medos, horrores e traumas inconfessáveis da mente domesticada.
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Na História do olho, a batalha (em ressonância ao nome do autor) entre Eros e Tânatos é o motor da narrativa, que conjuga uma forma extremamente realista e austera a um conteúdo de exuberância e irrealismo que se aproximam da total inverossimilhança. As personagens que transitam nesse cenário ao mesmo tempo luminoso e grotesco, de elevação e perversão absolutas, à margem de qualquer limite para a consumação de suas obsessões que, todas, aproximam-se da forma e dos sentidos do olho - ovo, cu, colhões, sol, globo ocular -, são a corporificação literária dos tormentos de seu criador, e instrumentos da libertação catártica de seus traumas infantis (cuja exegese é feita, ao final da narrativa, através de uma inesperada intromissão do autor).
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Percorremos suas páginas de sombra com a angústia de quem percorre o pesadelo de se estar nu em meio a pessoas totalmente vestidas. Uma experiência inquietante e única, como é da natureza dos sonhos.