Marinho 31/07/2015
Atenção: Em sintonia com o teor da obra, esta resenha apresenta termos considerados chulos e de baixo calão.
Não é nem um pouco difícil compreender porque “História do Olho” foi uma obra que teve que ser publicada em sigilo e anonimato em sua época. As páginas da novela, permeadas “de sangue, de urina e de porra”, sublinham um caminho de expressão autobiográfica que dificilmente seria compreendido pelo imaginário contemporâneo do livro. É através de um erotismo exagerado e de uma perversão material que Bataille escolheu expurgar os demônios interiores cravados por experiências passadas e que tanto lhe consumiam.
A história não permite rodeios. Bataille conta “as aventuras sexuais” do Narrador (cujo nome não nos é dito) e de sua parceira Simone em um ritmo ágil e direto. Exceto por observações de elementos do ambiente que estabelecem uma sinestesia para com o próprio sexo, o narrador raramente divaga sobre algum aspecto. Tal tom determina um caráter realista de narração, contrastando com o teor dos acontecimentos, tão idílicos e exagerados em sua composição que são dignos de uma obra do Marquês de Sade (uma assumida influência). A perversão, o elemento-chave da história, é gradativa. Se inicialmente, apesar de já descritas de forma explícita e absurda, as experiências parecem brincadeiras de jovens, das quais os adultos assistem passivamente, ela crescem em intensidade, ligando e englobando o campo da volúpia aos da loucura, da morte e do sacrilégio. Tal caminho parece, inevitavelmente, relacionar a perversão com a decadência do ser humano.
É observado diversas relações metafóricas, como o próprio olho, que, assim como o prato, o cu, o ovo, e o sol, compõe a simbologia esférico-globular que objetifica o erotismo. Tal simbologia expõe uma camada da real substância do livro: a história é, deixando de lado o seu propósito autolibertador e considerando a ficção, um “ode sobre o cu”, objeto tão mencionado e tão cultuado que conduz do início ao fim as atitudes e propósitos dos personagens. Esse conjunto de elementos redondos é, no fundo, um personagem, tão importantes quanto o Narrador ou Simone, presentes do início ao fim e igualmente participantes da intensificação erótica. Todas essas metáforas se justificam na condição de expressão do autor, que a utilizou para figurar a sua relação com o pai que tanto lhe afetou, que era, além de paralítico, cego.
O interessante é que, apesar de todas as situações que determinam o grau erótico da obra, talvez o capítulo mais importante seja o último, “Reminiscências”, no qual o escritor abandona o personagem-narrador e assume a própria identidade, explicitando a relação entre os acontecimentos de sua vida e o que isso significou para a criação da história. Aqui, conseguimos enxergar o sentido que há por trás de tantas obscenidades. Apesar do exagero, “História do Olho” é uma escrita cheia de elementos autobiográficos, e essa entrega pode ser entendida como uma necessidade de “botar para fora” traumas e vivências angustiantes, talvez não totalmente superadas, mas confrontadas e descritas.
É nessa condição de “livro-cura” que “História do Olho” mostra o seu real valor literário. Para além de todo o exagero lascivo, a obra é produto de uma transição, um marco entre uma pessoa conturbada e outra libertada, que buscou exprimir-se livre de escrúpulos que certamente o limitariam e afetariam o seu processo de expurgo emocional. Essa externação fiel, esse retrato honesto da persona subjetiva de seu criador: isso é literatura pura. Não é esse o real propósito da arte: a busca de si mesmo?
Representando um claro exemplo de secreção literária, que coloca o autor nos trilhos da expressão experimental e nos coloca na posição de analíticos da relação entre fatos e ficção, a “História do Olho” torna-se então um livro que está muito além de sua história.