jota 03/04/2015Aos oitenta anos tudo é permitidoEm O Assassino Cego, laureado com o Booker Prize 2000, temos um livro dentro de outro livro, todo ele composto por notícias e reportagens de jornais, histórias folhetinescas de ficção científica e sobretudo pelas lembranças de uma canadense octogenária, Iris Chase Griffen. Lembranças que podem ser reais ou apenas divagações da narradora, quem sabe?
Com essa obra Margaret Atwood nos leva de volta ao Canadá dos anos 1930-40, especialmente para Toronto e a cidadezinha (ficitícia) de Port Ticonderoga, mas igualmente nos transporta para o planeta Zicron, onde assassinos cegos são usados em missões especiais, para matar, claro. (Gostei bastante das histórias zicronianas, mesmo não apreciando tanto assim esse tipo de narrativa, mas é que elas são muito doidas.)
A narrativa cobre um período que abrange desde o ano de 1870 até o final do século XX, mas nem de longe a história contada por Iris segue linearmente. Logicamente que o livro tem início, meio e fim, mas é como se não os tivesse tão delimitados assim.
Pois é tudo junto e misturado e somente próximo do final é colocada em nosso caminho a grande revelação (ou revelações) que esperávamos - as respostas para as nossas perguntas e dúvidas suscitadas pela leitura. Aí então toda aquela confusa confusão em que estivemos mergulhados até quase a metade do livro desaparece, claro.
Se foi prazeroso ler O Assassino Cego foi igualmente um tanto penoso chegar ao final. O volume tem 495 páginas (no formato 16 x 23), mas parece ter 700, por aí. É que Iris narra, sempre com muitos detalhes, a história de várias gerações de sua família (os Chase), quer dizer, desde seu avô até sua neta.
Dentre as dezenas de personagens ganham destaque sua excêntrica irmã Laura (a que faz sempre as melhores perguntas e as mais engraçadas), o agitador e escritor Alex Thomas (por quem Laura é loucamente apaixonada), o rico industrial Richard Griffen (depois marido de Iris) e a irmã dele, “Freddie” Griffen (uma socialite como poucas da literatura).
E claro, tem também os habitantes do planeta Zicron. Os zicronianos “desenvolveram a habilidade de viajar de uma dimensão espacial para outra (...). Eles chegaram aqui [na Terra] há oito mil anos. Trouxeram com eles um monte de sementes, e é por isso que nós temos maçãs e laranjas, sem falar nas bananas — basta olhar para uma banana e você vê imediatamente que ela veio do espaço.” Mas não exatamente do planeta dos macacos...
Daí que o livro é também engraçado, ainda que seja fundamentalmente dramático (e em certos trechos melodramático) e com enormes chances de seduzir muito mais leitoras do que leitores: é claro que o batom laranja usado por Freddie Griffen tinha muito a ver com seu modo fingido de ser e agir, mas tantos detalhes femininos acabam cansando os leitores – e Freddie cansava Iris e Laura mortalmente.
Mesmo assim gostei muito desta obra de Margaret Atwood, escritora inteligente e criativa, que faz crítica social profunda mas também nos oferece ironia e comicidade através de seus personagens. Ela faz um jogo com o leitor: apesar do título este não é um livro policial, mas se você gosta de descobrir pistas que podem elucidar certos mistérios da história antes do seu final elas estão distribuídas tanto entre os terráqueos quanto entre os zicronianos, entendeu?
Continuando com a brincadeira termino com uma advertência (em pensamento) de Iris para seu vaidoso cardiologista, durante uma consulta de rotina: “Em breve você vai se arrepender de todo esse sol que tomou para se bronzear. O seu rosto vai parecer um testículo.” Aos oitenta anos tais pensamentos são permitidos a todos...
Lido entre 18/03 e 03/04/2015.