Mara Vanessa Torres 07/04/2012
Os fantasmas de Dickens
No último dia 7 de fevereiro, o Reino Unido prestou uma grande homenagem ao bicentenário de Charles Dickens, considerado um dos maiores escritores de todos os tempos. Mundialmente conhecido pelas histórias espetaculares e personagens cativantes, Dickens inspirou a criação de um parque temático em Kent, à leste de Londres, onde sua vida e obra podem ser conhecidas com mais proximidade.
Com obras que circulam dos problemas familiares às condições desumanas de miséria da época, o escritor britânico retratou o melhor e o pior da capital que exalava modernidade e, ao mesmo tempo, flertava diretamente com a pobreza, a exploração do trabalho infantil e o esquecimento das relações fincadas no amor e solidariedade. Dickens deu vida à personagens imortais como Oliver Twist, David Copperfield, Philip Pirrip (Grandes Esperanças) e o odioso (depois convertido) Ebenezer Scrooge.
Meu primeiro contato com Charles Dickens ocorreu quando li Retratos Londrinos, um reflexo de humor sério (por mais paradoxo que isso possa parecer) da Londres do século XIX. Alguns anos depois, decidi me aventurar em outras obras até parar na compilação de contos organizada pela editora L&PM. "Histórias de Fantasmas" (L&PM, pág.192) inclui treze contos com o melhor dos fenômenos sobrenaturais e fantasmagóricos na visão de Dickens, que demonstrava ter um grande interesse nesse tipo de conteúdo. Terror, suspense, atmosfera espectral e inúmeras lições de vida estão reunidos em histórias como "Manuscrito de Um Louco" (A Madman's Manuscript), onde um homem esconde sua insanidade atrás da fortuna e da falta de observação da sociedade. A vida social parece estar mais interessada em acreditar no que visualiza na superfície, amparando à sua própria conveniência) e "O Barão de Grogzwig" (The Baron of Grogzwig), narrativa que traz o desespero de um nobre ao ser 'encarcerado' em uma vida doméstica, longe de seu séquito de caçadores e amigos e assistindo, a cada novo ano, ao nascimento de um(a) filho(a) e diluição da fortuna. Em algumas partes do conto, parece que Dickens toma o personagem do barão para si, procurando sempre uma saída para o que, em uma análise precipitada, parece impossível. Particularmente, é um dos meus contos preferidos e o enredo acompanha um final surpreendente.
A maldade humana também se faz presente em histórias como "Uma Confissão Encontrada no Cárcere à Época do Rei Carlos II" (A Confession Found in a Prision in the Time of Charles the Second) e "A Noiva do Enforcado" (The Hanged Man's Bride), com a descrição de assassinatos e torturas terríveis, envolvendo a figura infantil e feminina. Mas como nem só de desgraças vive a humanidade, Dickens presenteia o leitor com o comovente "Uma Criança Sonhou Com Uma Estrela" (A Child's Dream of a Star), conto que aborda a morte na perspectiva de um garotinho e da saudade que ele tinha da irmãzinha. Ao final da narrativa, eu estava com os olhos inundados.
Outro conto que merece destaque por sua ironia fina e difusão de suspense é "O Julgamento por Assassinato" (The Trial for Murder), com assertivas que nunca irei esquecer: "Entre nós havia um conselheiro paroquial - o idiota mais completo que já vi - que via na mais comum das evidências as mais disparatadas objeções e que estava ladeado por dois paroquianos parasitas e débeis; todos os três listados como jurados de um distrito tão esvaziado pela febre que eles mesmos deveriam estar sendo julgados por quinhentos assassinatos". Uma caricatura que vai além das portas dos tribunais e circula pelas ruas, igrejas, casas, escolas.
Charles Dickens me remete ao grande escritor brasileiro Machado de Assis, tal é sua capacidade de observação e distinção da realidade social, com ironia fina e bom humor. O programa Globo News: Espaço Aberto - Literatura fez uma reportagem especial pelas comemorações dos 200 anos de Dickens, fato que também foi lembrado pelo buscador (e quase acionista majoritário dos serviços na rede) Google.
A coletânea "Histórias de Fantasmas" vale cada sensação, permitindo conhecer de perto o lado mais sobrenatural de Dickens. Contando com diferentes tradutores, é mais uma alternativa para desvendar o trabalho do grande escritor e contista inglês, que conta com mais de 30 livros e quase todos já traduzidos em português. Muito mais do que fantasmas, Dickens faz emergir esperanças e remorsos humanos.