Mika 17/03/2015
Rompendo paradigmas através do amor
Conhecer outras culturas e ter novas experiências a partir disso, expandem nossa compreensão de mundo. É por isso, eu acho, que as pessoas são tão fascinadas por viagens, por atravessar mares e continentes, aventura-se no desconhecido e explorando novas possibilidades, novas formas de ver e viver a vida. E acho também, por experiência própria, que é possível transpor fronteiras, mesmo que imaginárias, através da literatura.
E foi isso o que aconteceu comigo nos últimos dias, apesar de ter decidido que nessas férias eu não faria nada extraordinário, o destino me pregou uma peça e fui imersa em uma cultura totalmente nova e desconhecida em seus pormenores. Tudo isso graças a um livro lindo, intenso porém delicado, que ao terminar me deixou com uma dorzinha leve no peito, uma saudade do cotidiano da história, dos personagens, das emoções que vivi ao lê-lo, como se realmente as tivesse vivido.
Ao me lembrar de Uma pequena casa de chá em Cabul a palavra que me vem a mente é memorável. A história se passa em Cabul - Afeganistão, não necessariamente nos dias atuais, mas em algum tempo entre o atentado de 11 de setembro e os dias de hoje. Talvez, pela descrição de algumas rotinas e de alguns aparelhos usados no enredo do livro, no final da década passada, pra tentar ser um pouco mais exata. Uma trama rica, a história muito bem contada, sob os vários pontos de vista de personagens bem construídos, bem detalhados, uma rotina forte em fatos e costumes que faz com que mergulhemos de fato no que é, ou era até então, a realidade da cultura e tradições afegãs conturbadas pelo período entre guerras.
Cinco mulheres, de origens, saberes e culturas distintas, encontram-se, por circunstâncias afins, no cotidiano de uma movimentada casa de chá. Essas relações, construídas a princípio por motivações duvidosas, e bastante frágeis em determinados momentos, conseguem transpor as barreiras das convenções impostas pela sociedade e criam laços que geram transformações profundas não apenas nelas, mas também às pessoas que diretamente as cercam, expandindo inclusive para um contexto mais amplo, agindo como catalizadoras de mudanças na situação de risco que vivem tantas outras mulheres do país.
Trata-se de uma história de amor, de luta e de coragem, de quebra de paradigmas e superação de convenções que quase sempre se mostram irracionais e sem fundamento até mesmo na própria tradição.
Minha primeira reação, enquanto lia, era de estrema gratidão e reconhecimento do quanto sou bem aventurada por nascer num país livre e de certa forma pacífico, na condição de mulher. A jornada é longa e ainda falta muito para que as relações de e entre gêneros se tornem equilibradas e imparciais. No entanto, seria uma injustiça da minha parte fechar os olhos para o quanto avançamos no Brasil, especificamente nos últimos 100 anos, em termos de direitos para mulheres.
Se pensarmos na conquista do direito a educação, o trabalho assalariado (fora da esfera do lar e criação de filhos), a conquista do voto, às políticas para mulheres fortalecidas na última década, reconheço sim, que muito nos já percorremos nesse terreno tão delicado.
E fazer esta reflexão me chocou profundamente, não pela distância que separam nossas realidades, mas por perceber que em pleno século XXI, com todo o desenvolvimento intelectual, a excessiva disseminação de conhecimento da nossa era, ainda somos tão principiantes, para não dizer amadores, em questões tão básicas como o dos direitos humanos, e a premissa elementar de que somos todos, permitam-me a redundância, humanos! independente de gênero, cor, raça, credo e, em tempo oportuno, ideologia política.
Outra faceta interessante do livro é como a autora descreve as relações interpessoais, independente de gênero e classe, dentro da tradição afegã. Como a narrativa se dá de forma onisciente, o leitor acaba tendo uma visão geral de todos os personagens em suas ações, interação com outros personagens, seus pensamentos, seus anseios, julgamentos, e até mesmo suas expectativas.
A partir desse ponto de vista, podemos perceber o quanto aquilo que se vê circunstancialmente no outro, converge num julgamento deliberado, que tão pouco ou nada tem a ver com o que é de fato a essência do indivíduo observado, no entanto, determina suas relações com o mesmo, e de um modo geral as relações em sociedade. Percebo também que esta não é um fator isolado característico de uma única cultura, e que se observarmos com um pouco mais de cuidado, reconhecemos que as bases das nossas próprias relações estão fundamentadas essencialmente naquilo que vemos e consequentemente julgamos no outro, naquilo que supomos que os demais poderão representar a cerca da visão de mundo ou de nossas expectativas. E isso não é novo, e nem está longe de acabar.
De todas as reviravoltas que a história dá, de todas as reflexões que ela nos propões, o que tirou o meu fôlego mesmo, a ponto de prender a respiração em certas partes, e verter algumas lágrimas contidas, confesso, foi o poder transformador do amor. O amor, em sua forma mais ampla, quebra barreiras, supera dogmas, enternece os mais severos corações. O amor transforma desastres em reações surpreendentes. Sim, o final tem um desfecho bem "felizes para sempre", romântico até demais para todo o contexto em que ele é inserido, porém, o amor é isso, é transpor paradigmas, é superar o obvio, é se permitir olhar além do que é socialmente esperado. E essa avalanche de emoções é o que torna este livro o que ele é, grande, transformador, memorável.
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