Coruja
01/04/2018
Esse título primeiro me chamou a atenção quando foi indicado, em 2013, para o Goodreads Choice Awards. Quando foi publicado cá no Brasil, pela Darkside, o projeto gráfico fez com que eu me enamorasse ainda mais dele. Comprei ele quase que logo depois do lançamento e, em vez de começar imediatamente, no embalo de opiniões empolgadas de muita gente que eu conhecia e tinha lido… deixei-o na estante, quieto. Até cheguei a começá-lo, mas não fui além do primeiro capítulo, em meio a cansaço e uma ressaca literária violenta.
Este ano, finalmente, voltei a tirá-lo da prateleira, num estado de espírito bem diferente de quando tentei a leitura pela primeira vez. No final das contas, não me arrependo da espera: O Golem e o Gênio bem vale toda a atenção que pude devotar a ele agora.
A história se passa na Nova York do início do século XX, um período de intensa imigração para o ‘Novo Mundo’. Nossos protagonistas são ambos imigrantes, embora não se possa dizer que eles tenham tido alguma escolha nessa jornada. Chava, a golem, foi moldada para servir de esposa para um homem mesquinho, que a desperta no meio da viagem e pouco depois falece, deixando-a sem um mestre e sem qualquer ideia de como lidar com sua própria natureza. Ahmad, o gênio, não se lembra exatamente de como foi parar dentro do lâmpada, mas sabe que isso aconteceu há quase milênio. Longe de casa, preso numa forma humana, ele pratica pequenas rebeldias para não perder de vista sua própria identidade. Quando seus caminhos se encontram, eles descobrem conforto na ideia de terem alguém capaz de entender o quão diferente eles realmente são dos humanos que os cercam - uma companhia na qual podem deixar suas verdadeiras naturezas virem à tona.
Golens são criaturas da mitologia judaica; seres artificiais feitos de barro e pedra, trazidos à vida através de processos divinos, sujeitos à vontade de seus criadores. Considerando a dificuldade e o envolvimento da cabala em seu processo de criação, seus mestres eram considerados sábios, pessoas próximas de Deus. Em termos técnicos, não se pode dizer realmente que eles sejam criaturas conscientes, mas simples ferramentas submetidas ao bel-prazer de seu senhor.
Gênios ou djinns fazem parte das crenças pré-muçulmanas de vários povos do Oriente Médio. Inseridas no islamismo, essas entidades se encontram num patamar entre anjos e humanos; podendo ser identificados como demônios, se maléficos; regra geral, contudo, permanecem à margem da humanidade. Nesse contexto, somos mais familiares com a figura do gênio preso à garrafa, submetido à vontade de um mestre a quem concede desejos.
A princípio, Chava, a golem e Ahmad, o djinn, têm naturezas muito diferentes. Ela anseia por um mestre, confusa pela liberdade que lhe foi deixada pela morte do homem que a despertou, ao passo que Ahmad sonha com a liberdade do deserto que foi obrigado a deixar para trás. Deixando de lado o que eles pensam sobre si, o leitor que conhece as lendas das quais eles se originam perceberão que, em comum, o que eles têm é justamente a ideia de prisão. Se formos perguntar pela rua, talvez pouca gente saberá o que é um golem, mas todo mundo vai se lembrar do gênio da lâmpada de Aladdin, que, ao final, é preso a sua lâmpada.
Essa questão de confinamento é algo que a autora trabalha muito bem no livro. Chava e Ahmad se sentem confinados pelos humanos que vivem ao seu redor, pelos quartos de cortiço em que moram, pelas comunidades contidas - no caso dela, o bairro judeu, no dele, a “Pequena Síria” -, pela cidade em si. E isso não se restringe aos personagens sobrenaturais. Na verdade, esse sufocamento é algo que vários dos personagens humanos também têm em comum com os protagonistas: Mahmoud Saleh, incapaz de encarar os olhos das pessoas que o cercam desde seu desditoso encontro com um ifrit; Michael Levy, cuja vida é o centro de acolhimento de imigrantes judeus; Sophia Winston, jovem, bela, rica e submetida às expectativas sociais de seu gênero e posição; Anna, Boutros, Matthew, pobres, temendo o julgamento da sociedade ou a repercussão de suas ações - todos eles convivendo com solidões avassaladoras, sonhando com uma família, com um futuro melhor ou mesmo o retorno para seu país natal.
Ao longo do livro, esses personagens vão buscar a liberdade, vão tomar atitudes irresponsáveis por vezes, mas estarão sempre atrás do prêmio maior, que é serem capazes de fazer suas escolhas. E a maior liberdade que Chava e Ahmad são capazes de encontrar nessa babel de línguas e culturas é na amizade que passam a cultivar ao se conhecerem; na possibilidade de se revelarem como realmente são.
A golem e o gênio são estrangeiros nessa sociedade de humanos… mas os humanos aqui também são estrangeiros; em sua maioria, imigrantes, tentando encontrar seu lugar na cidade, no seu novo país. Nesse aspecto, O Golem e o Gênio me lembrou muito Deuses Americanos do Gaiman - e em especial, algumas das adições feitas pela série. Não digo isso apenas pelo fato de haver um djinn na América em ambas as histórias, mas pela maneira como elas exploram a construção da cidade e de sua própria identidade através dos imigrantes que ali chegaram, e das crenças que trouxeram consigo. Porque nossos protagonistas buscam, além da liberdade, aquilo que faz deles quem são.
Ahmad tem mais de mil anos, boa parte deles preso dentro de uma lâmpada; ele não teve escolha na forma como terminou chegando a Nova York, não tem escolha também do papel que é obrigado a assumir, vez que é incapaz de retornar a sua forma original e precisa não apenas encontrar seu lugar na sociedade humana que o cerca como também entender quem ele é diante de tantas mudanças. Chava tem uma situação ainda mais complicada; sua existência se mede em meses e ela apenas começou a entender como o mundo ao seu redor funciona, que dirá quem ela é realmente, despida da vontade de um mestre.
Parece, porém, existir algo mais que coincidências na forma como Ahmad e Chava se descobrem… algo ligado ao papel de Yehudah Schaalmann, o homem que criou a golem e chegou à América atrás do segredo da vida eterna.
O Golem e o Gênio alterna capítulos seguindo cada protagonista, com flashbacks que, pouco a pouco, ajudam a montar o quadro maior da história. Esse estilo fragmentário, especialmente no começo da história, pode deixar o leitor um pouco confuso, mas é algo necessário para manter as surpresas que vão se revelando ao longo do enredo. É o primeiro livro de uma série - e já descobri que o segundo volume tem previsão de ser lançado em inglês esse ano -, mas o final é satisfatório, de forma que você pode se conter ao primeiro volume se quiser. Como gostei dos personagens, quero ver o que mais a autora aprontou para eles, especialmente porque, pela sinopse de The Iron Season, eles terão de lidar com o início da Primeira Guerra Mundial e isso me deixou bastante curiosa. Esperemos o que vem por aí
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http://owlsroof.blogspot.com.br/2018/04/o-golem-e-o-genio-uma-fabula-sobre.html