edu basílio 18/09/2020o gigante kazuo
ishiguro tem apenas 8 livros publicados (7 romances e 1 de contos).
esta é sua obra mais recente até o presente (publicado em 2015), e o 4° de sua autoria que leio. se nos 3 outros -- "um artista do mundo flutuante", "os vestígios do dia" e "quando éramos órfãos" -- kazuo situa as vidas de seus densos protagonistas em cenários reais e cruciais da História do século XX, com narrações em primeira pessoa, em "o gigante enterrado" ele ousou pesado para se reinventar: não apenas é seu primeiro livro em terceira pessoa, como também é sua primeira incursão no gênero fantástico. e, sendo o mestre que é, não falhou em nos entregar um livro transbordante de reflexões e de beleza.
em uma época que talvez seja o início da alta idade média, no território que hoje é o reino unido, os habitantes de diversas aldeias estão mergulhados em uma "névoa do esquecimento", consequência do hálito da dragoa querig, que habita os recônditos de montanhas nos arredores. por isso, ninguém é capaz de se lembrar de nada além do que ocorreu poucas horas antes, e nem tampouco se importar com isso. em meio à saudade e a fragmentos parcos de memórias do filho que há muito deixou a aldeia, axl e beatrice, um casal já idoso, decide sair em busca desse filho. no caminho, além de enfrentar as intempéries da própria natureza, terão que se esquivar de ogros famintos e lidar com monges de intenções e hábitos (sem trocadilho) ambíguos. acabarão cruzando os caminhos de dois cavaleiros, também fascinantes personagens do romance: sir gawain, um velho descendente do rei arthur, e o jovem e aguerrido wistan. ambos afirmam ter a missão de encontrar e matar a dragoa cujo hálito espalha a névoa do aquecimento sobre os povos...
se em um primeiro momento esse 'plot' pode parecer estranho para quem conhece a obra pregressa de ishiguro, o brilhantismo do autor é reconhecível em menos de 20 ou 30 páginas. primeiro, porque seu cuidado e sua elegância nipo-britânica com as palavras são inconfundíveis já no começo. além disso, esse cenário fantasioso é apenas uma roupagem nova para as questões tão caras e de presença tão marcada em sua obra: até que ponto aquilo que lembramos é fiel ao passado ou moldado por nosso coração? como e por que as memórias definem quem nos tornamos e como agiremos? aqui essas questões abarcam terrenos ainda mais amplos: até que ponto a preservação a todo preço da memória coletiva é algo bom e desejável? quão forte deve ser um amor para que ele nada tenha a temer das memórias?
... sem acesso pleno a suas próprias lembranças -- toldadas pelo hálito de querig --, em meio ao silencioso fogo cruzado da desconfiança mútua entre gawain e wistan, e ainda sofrendo na pele as fragilidades típicas da velhice, nossos protagonistas axl e beatrice demonstrarão uma resiliência louvável, firmes em seu propósito de resgatar suas memórias, prosseguir se amando e reencontrar seu filho... enquanto a trama ruma para um desfecho que aperta forte o coração.
felizmente, o gigante kazuo não está enterrado: está bem vivo, ainda jovem, na casa dos 60. "o gigante enterrado" é uma linda obra, que honra a literatura como arte estética e como elemento motor para questionamentos sobre o impacto do passar do tempo sobre nós, bem como sobre o papel nosso de cada um no coletivo.
eu soube há poucos dias que, em março de 2021, será publicado o próximo romance de ishiguro, intitulado "klara and the sun". trata-se da primeira publicação do autor após o merecido nobel com que foi laureado em 2017. torço para que a tradução no brasil não tarde!
e torço, sobretudo, para que esse gigante permaneça em atividade por décadas, nos oferecendo alento com a beleza de sua literatura -- com mais premência ainda, hoje, nesse mundo em que, de indivíduos ao nosso redor até instituições internacionais, parece ter virado hábito mostrar "vernizes cheios de luz" que são fachadas ilusórias para um acúmulo assustador de recalques, frustração, grosseria, incoerência e agressividade.
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