Renata CCS 26/04/2018Porque existem histórias que merecem ser contadas..
“A família é como a varíola: a gente tem quando criança e fica marcado
para o resto da vida.”
- Jean-Paul Sartre
Algumas histórias merecem - e devem - ser contadas. A vida da jornalista e escritora Jeannete Walls é, sem sombra de dúvidas, uma delas. Durante duas décadas, essa jornalista ruiva, bonita, brilhante e bem sucedida, que aterrorizava a muitos com suas colunas ácidas nos jornais de Nova Iorque, ocultou suas origens até mesmo de pessoas mais próximas. Deu-se conta de que era chegado o momento de contar sua história, depois de avistar de dentro de um táxi, indo para uma festa, sua mãe remexendo uma lata de lixo. Ela jamais havia mencionado para alguém que seus pais eram sem teto. Você pode se perguntar que tipo de filha deixaria os pais em situação de rua, mas dificilmente alguém conseguiria entender que aquela era a vida que os pais escolheram, e que recusavam qualquer ajuda.
Já li biografias surpreendentes, mas o livro de Jeannette é algo bem diferente de tudo que já vi. Sua família é muito peculiar. Seus pais, Rex e Rose Mary, são seres errantes, bizarros, temperamentais, negligentes e relapsos. São pessoas incompatíveis com uma vida em sociedade, que detestam seguir regras e completamente disfuncionais. São dois sonhadores que amam os filhos, mesmo com todo o descaso e irresponsabilidade. Digo isso sem exagero algum. Ao longo de toda a história, Jeannette e seus três irmãos são colocados em situações de risco e de total abandono. Vivendo como nômades, eles passam por diversas cidades americanas, chegando até mesmo a morar nas ruas. As dificuldades financeiras são inúmeras, pois os pais são avessos aos trabalhos regulares. Em certos momentos, Walls revela fome e desespero sem perspectivas de alguma melhora futura.
Mas não pense que a história é um dramalhão piegas cheio de ressentimento e autopiedade. Longe disso. A qualidade, leveza e bom humor com que o livro é escrito, e sem apelar em nenhum momento para explicações de cunho social ou psicanalítico, escapa totalmente de qualquer sentimentalismo banal. E apesar de não isentar os pais de quaisquer responsabilidades, ela não demonstra nenhum rancor ou amargura em relação a eles.
Para uma autobiografia, o livro é surpreendentemente fluído, uma leitura voraz. O relato de Jeannette é tão notável que nos transporta para o meio de sua família e, assim como ela, nos sentimos confortáveis com a liberdade que essa criação negligenciada proporciona, e de como, aos poucos, com o amadurecimento dos filhos, os absurdos dessa criação nos chocam imensamente, assim como a eles.
Trata-se de um livro que nos leva a um misto de sensações. Além de tratar de uma infância miserável, a obra fala da insociabilidade, da solidão de uma vida de exílio e privações, e da busca de sonhos e planos individuais. A história dessa família tem um caráter definitivamente único, mas de certa forma, fala também um pouco de todas as famílias, de todos nós.
Jeannette Walls tem uma capacidade extraordinária de envolver o leitor. Ao doar sua vida do jeito que ela fez, com tanta coragem e transparência, vemos sua trajetória profissional como jornalista e escrita de sucesso de uma forma ainda mais admirável.
A história da família Walls é notável, e vale muito a pena ser lida. O livro é imperdível!