Antonio Luiz 23/08/2010
Uma antologia de ficção científica brasileira de repercussão internacional
O leitor talvez queira considerar esta resenha como suspeita, pois o resenhista é um dos autores. Mas não fui só eu quem considerou esta como uma das melhores antologias brasileiras de ficção científica publicadas em 2009. Compartilha dessa opinião o estadunidense Larry Nolen – um dos mais conhecidos resenhistas do gênero no mundo – que listou este livro entre os 51 melhores lançamentos ou relançamentos desse ano entre os cerca de 500 de todo o mundo que chegou a ler. O livro também foi lembrado na retrospectiva de 2009 organizada por Jeff VanderMeer para o site internacional de ficção científica “Locus Online”, no “The World SF News Blog” e no site especializado “Steampunkopedia”.
Transcrevo um trecho da resenha de Nolen:
“When I first ordered this anthology back in August, I had some trepidation that the authors would ape the manners and styles of the Anglo-American steampunk writers and not write anything that would be original in form or content. If anything, the elements that these nine writers (...) use are more appealing to me than what I have found in the majority of the English-language steampunk fiction of the past decade. There is a darker undercurrent in this anthology, a sense that underneath the trappings of a steam age ‘golden age’ that there is much wrong with the local and global societies. A frustration that technological advancement and the rise of a leisure class is not improving the lot of the social classes as much as it should. There is a dark cloud in several of these stories, a cloud which threatens to burst asunder, bringing destruction and ruinous change in its wake”.
Parafraseando, Nolen temia que os contos fossem mera imitação da produção anglo-americana, mas descobriu nos brasileiros desta antologia algo mais atraente ou interessante do que têm encontrado na maior parte da ficção steampunk anglófona: uma percepção de que a tecnologia (representada pelas invenções steampunk) e a ascensão das classes ociosas não melhora a vida das demais classes sociais tanto quanto deveria. Há uma “nuvem negra” em várias das histórias, que ameaça trazer mudanças destruidoras em seu caminho. É curioso, pois essa mesma percepção estava bem clara em “The Difference Engine”, o romance de William Gibson e Bruce Sterling que definiu o steampunk como gênero. Isso significaria que os autores brasileiros estão sendo mais fiéis ao espírito original do gênero que os britânicos e estadunidenses.
Segue um breve comentário (meu, não de Nolen) sobre cada conto:
“O Assalto ao Trem Pagador”, do co-editor Gianpaolo Celli, é a aventura ilustrada na capa. Agentes de sociedades secretas usam um dirigível para se apoderar de ouro de Napoleão III, destinado a pagar uma encomenda à indústria bélica britânica. O autor visivelmente esforçou-se por seguir as convenções do steampunk e pesquisar detalhes sobre tecnologia da era do vapor e cultura vitoriana, que cita e explica em um número algo excessivo de notas de rodapé. A descrição do assalto em si é precisa e convincente. O problema é a inconsistência das situações que conduzem os protagonistas à ação. O protagonista, um inventor brasileiro pacifista e racional, se deixa persuadir com inverossímil facilidade pela “sociedade Rosacruz” a participar dessa ação violenta, em nome de uma estratégia para favorecer a unificação da Alemanha à custa da França, que nada diz a seus valores e interesses (a alegação de que “tornará mais branda a inevitável guerra vindoura”não faz sentido e fica inexplicada). Também é no mínimo forçado que no primeiro encontro a mocinha, uma alemã da sociedade dos Illuminati, sobrinha do luterano Nikolaus Otto, convide o protagonista Rosacruz, católico não praticante, a uma missa na catedral anglicana de Oxford. Já foi forçado, aliás, fazer dessa universidade famosa por estudos clássicos e literários um centro de tecnologia, quando haveria outros lugares mais adequados na Inglaterra.
“Uma breve história da maquinidade”, de Fábio Fernandes, é uma história alternativa de Viktor Frankenstein, na qual o doutor sobrevive ao confronto com sua criatura e se dedica à invenção e construção de autômatos a vapor que acabam por se tornar conscientes e reivindicar direitos. A ideia é interessante, mas a realização mostra-se apressada e algo confusa (além de conter uma suposta equação em “linguagem de máquina” que não faz sentido). O Viktor original morre sem deixar filhos, mas ninguém parece estranhar que seja sucedido pelo suposto neto Viktor Frankenstein III sem que tenha havido um II. O conto foi originalmente publicado em inglês e depois traduzido para o português – talvez com alguns cortes – o que talvez explique a sensação de falta de acabamento.
“A Flor do Estrume”, de Antonio Luiz M. C. Costa – este resenhista – passa-se em um Brasil que é o centro de um grande império luso-brasileiro e o líder da revolução industrial desse universo paralelo. Nesse mundo, um famoso personagem da literatura brasileira sobrevive à sua pneumonia, torna-se um empresário do setor farmacêutico, recebe de pesquisadores de Piratininga – uma São Paulo cuja cultura continua em grande parte tupiniquim – uma proposta irrecusável de um grupo de pesquisadores que fará avançar muito a medicina de seu tempo, mas terá de enfrentar certas dificuldades. Cabe ao leitor julgar se fui ou não bem-sucedido. A crítica mais comum que tenho ouvido é de que a linguagem é algo rebuscada: procurei ser tão fiel quanto possível ao mestre Machado de Assis, criador do personagem.
“A Música das Esferas”, de Alexandre Lancaster, é uma aventura dinâmica e divertida sobre um genial inventor de quinze anos, acompanhado por um amigo jornalista. O clima lembra o anime “Steamboy”, mesmo se atmosfera steampunk é um pouco prejudicada pela linguagem demasiado moderna, tanto nas expressões coloquiais dos diálogos quanto na terminologia científica (“neurônios” e “sinapses”, por exemplo, quando a história se passa em 1900). O ponto mais fraco é, porém, a virada sentimental do narrador no final do conto que, ao ser anunciada tão repentinamente e com tanta seriedade, sem nenhuma reflexão e evolução anterior, soa um tanto falsa e piegas. Que o jornalista surpreenda o jovem amigo, faz sentido, mas que tente surpreender o leitor, que acompanhou seus pensamentos ao longo do conto, é simplesmente um erro.
“O Plano de Robida: un voyage extaordinaire”, de Roberto Causo é uma complexa noveleta na qual o exército brasileiro enfrenta os ataques de misteriosos “navios aéreos”. Misturam-se nele personagens históricos reais, como Santos-Dumont e Landell de Moura, com concepções e citações de Júlio Verne (o vilão de “Robur, o Conquistador”), combinadas às do ilustrador e escritor Albert Robida (também conhecido por imaginar máquinas voadoras) e de autores de ficção científica brasileira do mesmo período, como Augusto Zaluar (que imaginou viagens de balão pelo interior do Brasil), Gastão Cruls (que escreveu sobre guerreiras amazonas na selva), junto com fantasias sobre vikings e atlantes na Amazônia. A história é vibrante e emocionante, no estilo dos romances de aventura do século XIX. O que deixa a desejar, na minha opinião, é o tratamento aos inventores, que fazem papel de bobos inermes lado do heroico protagonista, um militar. Santos-Dumont, por exemplo, é reduzido a um "motorista" ingênuo. Para investigar uma poderosa frota aérea inimiga, conduz os militares num dirigível primitivo, algo como tentar espionar uma base estratégica dos EUA com um monomotor. Além disso, duvida – logo ele – da possibilidade de máquinas mais pesadas que o ar: para explicar os veículos de Robida, faz uma hipótese indigna de quem, na história real, foi o maior engenheiro aeronáutico do seu tempo.
(Esclarecendo: na noveleta, Santos-Dumont especula que os veículos inimigos – cujo volume parece insuficiente para explicar sua flutuabilidade – voariam graças a algum gás mais leve que o hidrogênio. Isso não faz sentido: a capacidade de flutuação de um gás depende da diferença entre sua densidade e a densidade do ar – 1,3 gramas por litro. O hidrogênio tem 7% da densidade do ar. Com um balão de, digamos, mil metros cúbicos de hidrogênio, pode-se suspender a diferença entre o peso do mesmo volume de ar, 1.300 kg e o do hidrogênio, 90 kg – ou seja, 1.210 kg. Mesmo que pudesse existir um gás muito mais leve – com peso nulo, caso se queira – não poderia suspender mais que 1.300 kg com o mesmo volume, ou seja, meros 7% a mais).
“O Dobrão de Prata”, de Claudio Villa, é um conto de terror sobrenatural sobre aventureiros que tentam resgatar o tesouro de um galeão espanhol afundado. Uma boa história, mas não chega a ser steampunk: embora haja uma rápida menção a submarinos na história, os protagonistas recorrem a um navio e escafandros convencionais. Há pequenos erros históricos e oceanográficos: o título é equivocado (dobrões eram necessariamente de ouro) e o galeão é descrito como tendo afundado em uma “fossa”, em uma longitude e latitude onde tal coisa não existe (e se existisse, tornaria impossível o resgate com escafandros, pela profundidade excessiva).
“Uma vida possível atrás das barricadas”, de Jacques Barcia, apesar de também incluído na antologia steampunk é na verdade um conto New Weird, que segue bem de perto, em estilo, ambientação e posições políticas, o modelo de China Miéville, mestre e fundador desse subgênero que mistura fantasia, terror e ficção científica em um cenário pseudovitoriano. Dentro dessa vertente, é um ótimo conto, no qual um apaixonado autômato movido por molas e engrenagens foge num zepelim que flutua graças ao “éter” ao lado de sua amada, uma golem (humanoide animada por magia) de madeira e vegetação, para lutar ao lado de operários anarco-comunistas em greve, pelo controle de uma cidade-fábrica. Se o leitor gostou da sinopse, certamente gostará muito mais do conto – e se não a entendeu, também o entenderá muito menos.
“Cidade Phantastica”, de Romeu Martins, é uma aventura em um Brasil de um Segundo Reinado mais avançado e industrializado que o do D. Pedro II real, no qual se encontram personagens de Júlio Verne (“Da Terra a Lua”), Conan Doyle (“A Ponte de Thor”) e Bernardo Guimarães (“A Escrava Isaura”), além dos criados pelo autor. Como aventura cinematográfica, funciona bem, tanto na descrição da ação quanto na caracterização e uso de personagens tão heterogêneos. O núcleo da história, porém, repousa numa premissa pouco verossímil. Os vilões conseguem construir, em segredo, um supercanhão no centro do Rio de Janeiro, capital do Império, como parte de um projeto arquitetônico que certamente atrairia o interesse e a curiosidade de todos os engenheiros do planeta – e numa posição que o tornaria muito pouco manejável.
“Por um fio”, de Flávio Medeiros, contém uma das melhores narrativas do livro. Nele, dois dos mais poderosos personagens de Verne – o Nemo de “20 mil léguas submarinas” e “Robur, o conquistador” – se enfrentam a serviço de potências rivais, numa batalha tensa, cheia de tensão e suspense que, ao mesmo tempo, explora muito bem a psicologia dos personagens. O que me desaponta um pouco é que, nessa história, os fantásticos veículos criados pelos dois inventores nos romances do escritor francês são reduzidas – desnecessariamente, a meu ver – a máquinas muito mais banais, não superiores aos submarinos e dirigíveis realmente existentes no século XIX.
“20 mil léguas submarinas” não faria sentido se o Nautilus fosse um submersível trivial (primitivo a ponto de usar lampiões a gás, no conto de Medeiros), nem “Robur, o Conquistador” funcionaria se o Albatroz fosse um mero dirigível de estrutura flexível. O "Albatroz" foi explicitamente descrito por Verne como mais pesado que o ar: Robur começa o romance ridicularizando os balonistas que duvidam que isso seja possível. Construído em material absurdamente leve (papel endurecido) sua máquina era sustentada por hélices, como um super-helicóptero, movidas por motores “elétricos”. O “Nautilus” de Verne era um grande submarino, também movido por motores e baterias “elétricas” que lhe davam uma autonomia comparável aos submarinos nucleares da segunda metade do século XX e, naturalmente, era iluminado por lâmpadas elétricas.
Nesse aspecto, o conto se mostra mais tímido que seus modelos do século XIX, como se receasse parecer inverossímil por usar máquinas excessivamente avançadas. É um tanto paradoxal que isso não fosse problema para Verne, que escrevia quando essas máquinas ainda eram de fato impossíveis, mas pareça sê-lo para o autor de hoje. É um caso de “hipercorreção”, de limitar a especulação ao supostamente factível no século XIX – um pouco como autores de histórias “medievais” fogem de usar pólvora e canhões em suas histórias, embora já existissem nesse período. Não acho isso necessário: quem lê um conto steampunk aceita como parte das convenções do gênero que máquinas como as imaginadas por Verne, Robida e H. G. Wells possam funcionar, assim como quem lê space opera aceita naves mais velozes que a luz. Deveriam ser corretas as referências à ciência real e verossímeis as situações, os personagens e suas motivações, mas fazem parte do gênero o exagero e a extrapolação especulativa das possibilidades da tecnologia do século XIX, como o faziam os pioneiros da ficção científica.