spoiler visualizarIan 09/06/2024
Onde García Márquez encontra Kafka
?No dia em que iam matá-lo, Santiago Nasar levantou-se às 5:30h da manhã para esperar o barco em que chegava o bispo.?
Com um pontapé inicial kafkiano, García Márquez começa a obra às avessas. Essa jogada de mestre dá o tom perfeito à narrativa, na qual tentamos, a partir da perspectiva do narrador, reconstruir o ?espelho quebrado da memória? do ocorrido. Para tal, o autor busca fragmentos na memória alheia, até porque, como vamos compreendendo ao longo da narrativa, muitos elos distintos tiveram que ser encadeados até chegar no elo que rompe nas mãos de Santiago Nasar. A sensação, ao final, é de que o crime foi coletivo, e que deve, portanto, ser reconstruído como tal.
Assim, o narrador vai costurando sob a sua própria memória os fragmentos dos demais que participaram da tragédia. Porém, a cada fragmento adicionado a constatação inicial parece menos verosímil.
Seja pela compreensão, após passarmos a conhecer Santiago Nasar, de que não era possível que houvesse sido ele o feitor do malfeito, seja pela passividade de uma cidade inteira que não fez mais que contribuir com sua sentença, isolando-o em um crime que haveria de sofrer, como se o houvesse cometido! Uma crueldade kafkiana.
Tamanho é o nosso atordoamento com essa injustiça que chegamos ao final torcendo para - ou até acreditando - que tudo houvera sido um mal entendido. Essa esperança nos move desesperadamente até as páginas finais da obra, quando nós, como todos os cidadãos do povoado, somos pegos de supresa com uma morte anunciada. Somente García Márquez e Kafka foram capazes de nos surpreender com o que já sabemos
A conclusão final que nos resta é a mesma do fragmento retirado do relatório do caso pelo narrador:
?Principalmente, nunca achou legítimo que a vida se servisse de tantos acasos proibidos à literatura para que se realizasse, sem percalços, uma morte tão anunciada."