Mariana 07/03/2015Surpreendentemente BomLá estava eu estudando quinhentismo pela segunda vez no ensino médio e, de tanto que falavam dessa tal carta (e uma vez que a tinha em casa), resolvi ler. Essa edição da L&PM é comentada pelo historiador Sílvio Castro e isso deu todo o diferencial, principalmente na compreensão do texto. Antes de tudo, dei 5 estrelas porque não me senti no direito de dar menos a um documento histórico que é fonte de tanto conhecimento sobre o nosso Brasil e sobre o pensamento dos nossos colonizadores lá atrás há cinco séculos.
Bem, a carta que hoje se conhece é tradução de uma versão italiana do texto chamado "La Lettera di Pero Vaz de Caminha sulla scoperta del Brasil" pois a versão portuguesa se perdeu no tempo. A informação inicial acerca disso é contada nas primeiras páginas, assim como introdução sobre a literatura de testemunho (dos cronistas viajantes e seus relatos), texto, estrutura, linguagem da carta e sua importância para cultura portuguesa.
Pra começar a ler isso tudo, dei uma boa enrolada. É muita informação! E pra os leigos é difícil absorver (lembrando que minha base era só as aulas de literatura do colégio rsrsrs). Mas enfim, eis aqui iniciada a minha leitura da carta. Antes, um detalhe infeliz: eu, descuidada, não notei que no livro havia DUAS versões da carta. Uma delas, a primeira, foi a que comecei a ler estava em português arcaico típico do período de 1500. De início entendi bulhufas. Mas depois da "decodificação" (risos) me acostumei e, com um marcador amarelo do lado, devorei a história de como os portugueses chegaram à terra brasilis.
A carta é dirigida ao rei D. Manuel e a única preocupação do cronista é contar, como em um diário, tudo que ele vê e nota em sua viagem. De tão realista que é, senti como se tivesse chegando ao Monte Pascoal junto com as naus de Cabral. O mais interessante, no entanto, é o contato dos europeus com os índios.
"aly amdavam antre eles tres ou quatro moças bem moças e bem jentijs com cabelos mujto pretos compridos pelas espadoas e suas vergonhas tam altas e tã çaradinhas e tam limpas das cabeleiras que de as noos mujto olharmos nõ tiynhamos nhuua vergonha."
Eles tiveram um contato muito pacífico com os índios e já são relatadas na carta as primeiras formas de escambo, contato este acompanhado pelas ilustrações do francês Jean de Léry. Caminha sempre fala deles como pessoas simples, inocentes e sem conhecimento de religião. É muito abertamente expresso na carta o desejo de catequizar esses povos, em nome da boa vontade do rei de Portugal de expandir a fé católica. Os índios assistiam respeitosamente às missas de Frei Henrique de Coimbra (por curiosidade, não por fé) e repetiam tudo que os portugueses faziam, inclusive beijar a cruz erguida. Eles ajudavam de boa vontade a cortar lenha e a carregar suprimentos. Alguns são levados às naus e experimentam a comida e o acolhimento português. Uma cena engraçada é a tentativa de um ancião indígena de furar com uma pedra os lábios de Cabral, assim como são furados os seus. Os cobaias da frota são dois degredados, entre eles Afonso Ribeiro, que sempre recebem ordens para explorar a terra e se embrenhar na mata com os índios. Estes dois, o segundo seria João Thomar, são os primeiros voluntários deixados no Brasil.
É também muito presente na carta a exuberância da natureza – a consciência naturalista do autor maravilhado –, seus papagaios e os "bons ares" do Brasil, associada à ideia de paraíso. Caminha deixa claro também o interesse pelo ouro (metalismo mercantilista) mas atesta ao rei português que até então não há possibilidade de saber se ele existe ou não no Novo Mundo.
Quando terminei a carta, descobri que havia no mesmo livro uma segunda: a transcrição atualizada. E logo quando tinha passado maus bocados tentando entender a primeira! Me senti na obrigação de lê-la, já de segunda viagem, no português que conheço.
O fim do livro traz a versão de uma carta escrita por um "piloto anônimo" sobre a mesma viagem e a parte mais legal: um ensaio sobre a evolução cultural do Brasil a partir da carta de Pero Vaz de Caminha por Sílvio Castro. A carta é bonita porque é (quase) inocente. Embora dê indícios do que seria no futuro uma imposição cultural absurda e uma exploração imperialista, até então tudo era flores.
"Logo depois o espírito da palavra de Pero Vaz de Caminha começa a perder-se. Para a conservação das riquezas ameaçadas, os portugueses mudam de número e de natureza. Já não mais a serena amorável relação. Mas, a tomada do poder. Tudo contra a gentileza de ânimo da gente e da terra. O paraíso modifica-se lentamente. Modifica-se a vida. O claro imediato sentido da existência vê superado pela convicção colonizadora e imperialista. Até mesmo o colonizador – antes ingenuamente feliz – perde a visão do paraíso. Homens gentis são brutalizados. As palavras do escrivão de Porto Seguro são esquecidas, e o espírito de alegria não voa mais sobre os homens e coisas. Tudo agora é guerra e com ela são esquecidos aqueles primeiros sentimentos vividos nas praias do paraíso revelado. A partir de então – e por muito tempo – para sentimentos, raízes caracteres, faltarão as palavras. Será um longo tempo de penumbra, a noite brasileira, quando brancos, pretos, amarelos e vermelhos se confundem na comoção de um plasma ainda inominado: que hoje é a expulsão dos indígenas para longes terras ou morte deles; amanhã, a entrada do navio negreiro com a doçura do africano que chega para ser consumido na violência do trabalho sem dignidade; mais adiante, a solidão dos homens nas terras sem-fins, com a perda da consciência do mundo. Fuga, escravidão, silêncio, solidão ecoam naquela humanidade que existe e não se conhece. Sem palavras que possam revelá-la."
Desculpem a extensão do trecho mas tive que destacar sua genialidade. O autor faz então uma linha do tempo literária e sociopolítica do Brasil desde a colonização até o modernismo de 1922. Fala de simbolismo, parnasianismo e sobre BRASILIDADE, sentimento esse que remete à noção de nacionalidade: não mais de português, de índio ou de negro, e sim de brasileiro.
"Entre coisas e palavras – principalmente entre palavras – circulamos." (Carlos Drummond de Andrade).