Antonio Luiz 18/03/2010
Um passado plural
Em "O Brasil antes dos Brasileiros", André Prous, arqueólogo francês em atividade no Brasil desde os anos 70 e um dos descobridores do famoso esqueleto de Lagoa Santa conhecido como “Luzia”, oferece a leigos e professores de história uma síntese do estado-da-arte do conhecimento arqueológico da pré-história do Brasil. Apesar de concisa, é uma obra indispensável para o leigo e o professor de história adquirirem uma visão coerente e realista do passado deste território.
Para muitos países hispano-americanos, as culturas pré-colombianas, reconstituídas pela arqueologia e pelos cronistas, são estudadas em detalhe desde o ensino fundamental, como parte da identidade e formação da nação. Já no Brasil, há uma tradição de começar as aulas de história pela passagem de Cabral e tratar e os indígenas como meros obstáculos ou recursos encontrados pelos colonizadores. Seja como feras canibais, seja como bons selvagens em harmonia com a selva, são vistos como parte da natureza – como onças, araras ou pés de pau-brasil, não como seres humanos com cultura e passado próprios.
Quando não ficam com a impressão de que esta terra começou a existir quando os portugueses nela pisaram, muitos preenchem o vazio com idéias fantasiosas, obsoletas ou deslocadas. Muitos brasileiros semi-cultos tomam qualquer sinal de cultura pré-cabralina como prova da presença de fenícios, gregos, vikings ou incas, como se aqui jamais tivessem nascido seres humanos capazes de criar seus próprios símbolos e arte.
É o caso da cerâmica marajoara e das esculturas em pedra encontradas nos sambaquis e na Amazônia e até das pinturas rupestres do Nordeste e Minas Gerais – como as das pedras e grutas de São Tomé das Letras, nas quais se quis ver desde “letras” escritas pelo próprio santo até mensagens de extraterrestres.
Também é comum a idéia, tirada de filmes, livros e desenhos animados importados, de que os primeiros habitantes destas terras moravam em cavernas e viviam entre geleiras e mamutes, como se a Idade do Gelo da Eurásia e América do Norte tivesse sido universal e os trópicos não tivessem sua própria pré-história.
O livro de Prous desfaz esses equívocos. Mesmo rapidamente, explica as teses atuais sobre a origem dos primeiros povoadores do território brasileiro, há mais de 11.500 anos e descreve a fauna e flora por eles encontrada. Ainda mais importante, mostra a diversidade das culturas nativas que se desenvolveram no Brasil antes de Cabral e a variedade de suas realizações técnicas e estéticas, de maneira a corrigir a impressão de simplicidade e homogeneidade deixada por muitos manuais escolares.
E explica os métodos de pesquisa que permitiram relacionar diferentes tipos de vestígios para compor um quadro geral do modo de vida de povos desaparecidos. Entre os quais, o povo de “Luzia” com seus pesados instrumentos de pedra, os construtores dos sambaquis e fabricantes de estatuetas de pedra do litoral Sul, os ancestrais dos charruas e minuanos do pampa e suas casas subterrâneas nos “cerritos”, os artistas rupestres do Sertão e do Vale do São Francisco, os guerreiros tupiguaranis, os ceramistas de Marajó, os criadores dos muiraquitãs e dos complexos vasos rituais das culturas Santarém e Konduri e do Tapajós, os construtores de grandes aldeias e estradas do Alto Xingu.
André Prous adverte, porém, que essa ciência está ameaçada de extinção neste País. Existem, talvez, duas centenas de arqueólogos no Brasil, em geral meros portadores de um mestrado em história ou antropologia com “concentração” em arqueologia. Dedicam-se, na maioria, à arqueologia “de salvamento”, contratada pela iniciativa privada para uma avaliação de impacto ambiental seguida de rápida intervenção para liberar os terrenos de sítios arqueológicos para obras. A pesquisa acadêmica foi quase abandonada, salvo por estrangeiros, pondo em risco a possibilidade de os brasileiros conhecerem o próprio passado.