Lucio 08/01/2021
O Que é o Conservadorismo?
INTRODUÇÃO
Este livro trata de uma correspondência de Burke a um jovem fidalgo francês logo após o início da Revolução Francesa. Aparentemente, tal moço queria um parecer, talvez um elogio de Burke à revolução, e o filósofo lhe devolve uma volumosa correspondência com reflexões críticas, desaprovando veementemente toda a experiência francesa. Portanto, era o assunto do momento na época. Mas o que isso tem que ver conosco? Qual seria a relevância de um livro como esse para nós?
É preciso entender que nessas reflexões, Burke acaba dando início ao conservadorismo. Não que não houvesse pensamento conservador antes dele. Mas aqui a filosofia conservadora ganha sua inauguração formal. Os princípios fundamentais do conservadorismo estão presentes na obra. Alguns são trabalhados de forma breve, e autores posteriores dedicaram um amplo espaço no seu desenvolvimento. Outros, porém, são vigorosamente defendidos com argumentos poderosos.
Tal como nas epístolas pessoais do Apóstolo Paulo acabamos derivando doutrinas, nessa correspondência de Burke fazemos o mesmo, ou seja, não é por ser uma epístola e nem por atender a um “assunto do dia” de uma outra época que o livro não diz respeito a nós e ao nosso tempo. Na verdade, o livro é extremamente contemporâneo como todo clássico é imortal.
CONTEÚDO
1) Resumo Geral
Como o livro é uma correspondência enviada por Burke, não há divisão de capítulos. Burke até se desculpa por duas vezes por conta da organização da obra estar neste formato, dizendo que na medida em que foi versando sobre os temas viu que a coisa havia se avolumando de tal maneira que acabou ficando nesse formato. Mesmo assim, é possível resenhar o teor das reflexões - embora não necessariamente na exata ordem do autor.
Primeiramente, Burke quer analisar com mais cautela o que estava acontecendo. Na medida em que vai desenvolvendo o texto, parece ter se apossado de mais materiais e, com isso, foi tendo mais condições de fundamentar suas opiniões. A França alardeava um grande momento de vitória política, e Burke toma ciência de que duas sociedades inglesas haviam enviando nota de congratulação à Assembléia Nacional. Isso o incomodou bastante, pois pareceu dar aos franceses uma impressão de aprovação pública da parte da Inglaterra. Então, por um longo período, Burke começa a analisar a mais relevante dessas sociedades inglesas, a Sociedade da Revolução.
A Sociedade era composta de ilustres desconhecidos. Não representavam a Inglaterra e, de fato, não tinha qualquer relevância no cenário político. Daí já se via o cacoete. Posaram de representantes dos ingleses quando nem mesmo eram reconhecidos no seu país. Não assinaram seus nomes justamente para que sua insignificância não ficasse escancarada. Mas havia uma figura bem conhecida que participava do grupo, e que havia feito discursos extremamente perigosos. Tratava-se do Dr. Richard Price. Um ministro inglês que havia voltado seus sermões ao discurso político em apoio à Revolução. Burke passa a analisar o discurso.
Nele, basicamente, Burke denuncia a mascarada e escandalosamente equivocada sedição e traição à pátria dos progressistas ingleses. Price dizia que a revolução inglesa havia legado ao povo o direito de eleger seus representantes, demiti-los e de constituir seu próprio governo. Com isso, alegava que qualquer governo que não se enquadrasse fosse ilegítimo. Burke passa um longo tempo demonstrando que se esse fosse o caso, teriam de considerar o governo inglês como ilegítimo - o que se recusavam a fazer, certamente por temer as consequências. Antes, diziam que ele fora eleito - o que era absurdo, dado ser uma monarquia.
A partir desses três itens, Burke faz uma vigorosa defesa da monarquia parlamentar (não da monarquia absolutista, da qual os ingleses já haviam se livrado muito antes dos franceses) - embora reconhecesse haver ocasiões em que fossem legítimas outras formas de governo. Em primeiro lugar, desmente veementemente a alegação de que a Inglaterra tinha um governo eleito. Observa na história que o povo via na monarquia uma garantia da ordem e da sociedade que haviam conquistado. A monarquia tinha o dever de preservar as heranças políticas, sociais, civis e culturais dos antepassados e por isso foi historicamente estabelecida. É neste ensejo que Burke defende o papel importante da tradição como patrimônio da sabedoria da humanidade, o que é um elemento fundamental do conservadorismo - e que é defendido em vários lugares do livro. Analisaremos o princípio adiante. Quanto ao direito de demitir os regentes, Burke nota ser algo perigoso justamente por conta da ameaça de populismo que se converte em pão e circo, ou de não se poder tomar medidas necessárias que são impopulares com risco à candidatura.
O filósofo argumenta que os franceses poderiam ter adotado o mesmo princípio conservador para efetuar as melhorias que pretendiam. Eles tinham um passado riquíssimo que não deveria ser simplesmente abandonado, como fizeram e pregavam abertamente os revolucionários progressistas. Mas preferiram a revolução absoluta e a destruição de tudo o que tinham conquistado. E isso quando não havia a menor necessidade, pois não houve qualquer resistência minimamente considerável a todos os seus atos. Mais adiante, Burke acrescentará que o monarca francês, Luís XVI, era o ‘rei absolutista’ mais moderado de toda a história, e já havia feito muitas concessões, estava aberto a várias outras reformas e tudo se encaminhava para uma monarquia parlamentarista. Há ainda aquelas conhecidas acusações contra a nobreza e o clero, às quais Burke lida noutra parte, que exporemos adiante. É interessante já notar também que Burke acusa os revolucionários de ter inflamado os ânimos do povo contra o rei por meio de exageros dos seus erros ou mesmo inventando crimes que ele teria cometido de modo a justificar todo o tratamento feito ao monarca.
Burke, passa a relatar os horrores da revolução. A começar pelo assassinato cruel de guardas reais que não reagiram e a tentativa de assassinar o rei e a rainha. Seguiu-se pelo puro frenesi das massas, a liberação de criminosos na queda da Bastilha, a subversão completa da ordem, dos valores e da cultura. Inclusive, houve a clara rejeição da religião cristã - algo que Burke argumenta como esteio da sociedade e condição necessária para que haja alguma confiança de que os governantes cumprirão seu dever, pois, devendo ser crentes verdadeiros, saberão que prestam um papel e cumprem uma vocação diante de Deus. A religião, aliás, argumenta o filósofo, é igualmente importante para a preservação dos valores na sociedade e para incitar o cumprimento dos deveres, sabendo cada um que há uma providência que age no mundo hoje e uma devida remuneração no porvir.
Para explicar a causa de tal opção pela barbárie ao invés de uma transição ponderada, razoável e não-violenta, ele olha para os integrantes da Assembléia Nacional. Então nota que a maioria de seus representantes eram homens sem nenhuma experiência na administração pública ou qualquer demonstração de conhecimento quanto à gerência. Em outras palavras, indivíduos sem qualquer preparo político. Pior do que isso, haviam muitos advogados provincianos, de pequenas cidades, que viveram suas vidas entre pequenos litígios e que viam nessa oportunidade a chance de ampliar suas ambições pessoais. Havia também a participação de clérigos igualmente interessados na pilhagem e sem nenhum brilho, nenhuma figura de destaque ou que tenha provado seu valor. Era evidente que tais indivíduos viam na revolução uma ocasião propícia para tirar dos outros aquilo que não conseguiriam por seus próprios esforços e méritos. Portanto, deduz-se que Burke entende dever haver competências morais, intelectuais e boas ideias para que se faça boa política.
Mas, mais do que esses oportunistas, havia outro espírito fundamental que patrocinou toda a revolução. Tratava-se do espírito ateísta militante. Burke nota como haviam, desde o início do século, efetivamente dominado a imprensa e os meios de formação de opinião para divulgarem com vigor proselitista suas ideias secularistas e como haviam, junto a isso, caluniado e difamado todas as vozes dissidentes, de modo que qualquer manifestação contrária era logo rejeitada sobre o rótulo de negar as luzes, a ciência e a filosofia. E foi assim que a história romantizada e invertida da Revolução Francesa foi passada adiante, pois só sobraram as vozes dos próprios perpetradores do crime. A forma com que foram tão efetivos em seu ofício foi basicamente a de se unirem a duas classes da sociedade francesa. Os burgueses, que ascenderam à alta sociedade mas que não tinham linhagem nobre e, por isso, era rejeitada pela nobreza; e os pobres - a classe com maior número de pessoas. Àqueles, diziam que poderiam se vingar dos nobres e a estes que teriam seu quinhão. Assim, conseguiram o patrocínio necessário para o empreendimento cultural - já que a nobreza não contava com o capital, estando sua riqueza materializada em posses imobiliárias e fundiárias - e o apoio popular.
Este era o verdadeiro motor por detrás do movimento - e os que não estavam cientes disso foram usados como idiotas úteis. Tanto é o caso que após destronarem o rei, resolveram expropriar a igreja. Após rejeitarem uma oferta portentosa da igreja - para evitar que fosse pilhada -, mantiveram o firme propósito. Além disso, mesmo que conseguissem vender todas as terras, o valor não era suficiente para lidar com os compromissos financeiros que tinham. Necker havia até mesmo mostrado que algumas economias e uma pequena taxa sobre todos poderia lidar com a dívida do estado - e os nobres e o clero já haviam manifestado abdicar da isenção desse imposto. Solução alguma foi aceita como alternativa. O objetivo era mesmo a tentativa de destruição da igreja francesa.
Aliás, Burke desmente outra acusação falsa - usada como desculpa para o ataque - que era o fato de a nobreza e o clero serem isentos de impostos. Burke nota que os nobres eram pessoas boas, honradas e que tinham um bom comportamento e serviam como padrão moral e exemplo de virtude. Eram os nobres franceses até mais generosos na caridade que os nobres ingleses e não havia, salvo raríssima exceção, qualquer acusação legítima de maus tratos a seus empregados. É claro que havia vícios. Muitos jovens nobres demoravam muito para sair da vida de aventuras - embora na França mantivessem o decoro na imagem pública. Mas o pior defeito foi a rejeição dos burgueses à nobreza por não terem ancestralidade nobre - apontou Burke. E o clero era igualmente nobre, culto e produtivo - havendo, claro, exceções que, no entanto, não eram escandalosas em seus erros. Em suma, não apresentavam qualquer motivo para os ataques que sofreram. E quanto aos impostos, Burke nota que, primeiro, não eram isentos dos impostos sobre o consumo - que era a maior fonte de renda para a receita -, bem como tinham impostos exclusivos para eles, a saber, os impostos sobre terras, que também os fazia grande fonte para o erário público.
Burke dá uma especial atenção ao ato de expropriação como o cúmulo da tirania francesa. Afinal, essa era uma garantia da vida em sociedade e julgar ser plausível cometer tal injustiça era solapar o direito à propriedade e levar à perda da civilidade. Desculpavam-se dizendo que estavam querendo lidar com os credores a fim de bem estabelecerem a nova era das luzes. Burke demonstra a falsidade da desculpa pelo fato de que rejeitaram os compromissos do antigo regime, considerando-os espúrios e inválidos, mas consideraram particularmente esse como válido. E tal desculpa era ainda pior pelo fato de não haver necessariamente a imputação de qualquer crime ao clero que justificasse tal pilhagem - como faziam os antigos tiranos, ainda que inventando crimes àqueles que atacavam. Simples e arbitrariamente escolheram a igreja como alvo. Era evidente que se tratava de um ataque à fé cristã. Noutra porção, Burke diz que tentaram justificar o ataque à igreja por um argumento de ‘dívida histórica’, por conta da noite de São Bartolomeu. Aqui, Burke lança interessantes argumentos sobre filosofia da história, observando que os males da história foram conduzidos e encabeçados por vícios, e que os motivos políticos ou religiosos alegados não passavam de disfarce para justificar a maldade. Assim, o filósofo nota que ao condenarem os antigos padres que mataram os huguenotes - condenação que os padres do século XVIII faziam com veemência - estavam sendo eles mesmos tão maus quanto aqueles criminosos. Além do mais, se tal passado justificava o ataque, então franceses e ingleses deviam viver em guerra dado os prejuízos que se causaram no decorrer da história. Assim, após expropriarem as terras da igreja, passaram a abrir eleição para clérigos e não exigiam qualquer qualificação moral ou mesmo doutrinária. Com isso, levariam a igreja ao completo descrédito e a desacreditariam diante daqueles muitos do povo que ainda não haviam sido convencidos por sua insistente e incansável argumentação ateísta. É aqui que Burke fala sobre tolerância desde que não haja crimes e desacredita os franceses que achavam que teriam o apoio dos países protestantes por terem pilhado os católicos.
Sobre o rei que havia sido deposto, além do fato de ser muito aberto a reformas e já ter efetuado algumas, Burke nota que parecia estar fazendo um bom governo. A população era relativamente próspera e crescente - e o autor é sagaz o bastante para observar que isso não pode ser simplesmente atribuído ao governo ‘ceteris paribus’, mas que ao menos o governo não era um obstáculo, ao passo que em pouco tempo de Revolução a população já havia diminuído consideravelmente para além das baixas insignificantes do conflito praticamente inexistente da revolução -, e havia bastante riqueza - que foi vertiginosamente minorada em pouco tempo de administração revolucionária. Mas além de inventarem mentiras sobre o rei - como calúnias sobre gastos exagerados, desmentidas por dados informativos - prestavam grandes honras ao rei Henrique IV, que era muito menos pródigo em caridade e tinha tantas virtudes e defeitos quanto Luís XVI e, aliás, o próprio Henrique IV, se vivo, os mandaria para a Bastilha.
O filósofo também aponta que tentavam apontar defeitos nas instituições do antigo regime para tentar fazer as pessoas aceitarem os seus próprios, como se as únicas alternativas fossem a de manter as instituições com seus defeitos ou destruí-las por inteiro. Inclusive, acusavam quaisquer que não os apoiavam de apoiar a tirania da qual acusavam o antigo regime. Claramente, uma falácia da falsa dicotomia. Burke argumenta que era até mais fácil corrigir instituições do que toda uma população. E aqui se vale novamente o princípio de conservação que mantém o que havia de bom e corrige as falhas. Esse ponto é especialmente importante para um dos argumentos de Burke a respeito da venda das terras da igreja, pois se isso fosse adequado de ser feito - uma concessão para o bem do argumento -, deveriam observar se os novos proprietários seriam melhor possuidores das terras do que os antigos. E o que temos é que a igreja produzia cultura e praticava a caridade, além do justo gasto com seus próprios ofícios religiosos, ao passo que os novos proprietários eram apenas pessoas interessadas em enriquecer e em obter posses, sem qualquer compromisso ou dever público.
Para que os progressistas rejeitassem toda a sabedoria adquirida com a experiência administrativa política - que outorgava uma grande herança de conhecimentos adquiridos pela experiência - deveriam demonstrar um engenho fora do comum. Então, Burke passa a analisar o que propuseram no lugar de toda a sabedoria da humanidade com suas luzes inéditas.
Parte da análise é dirigida para a forma com que organizaram politicamente o país. Basicamente dividiram o país em porções quadriculadas iguais, ignorando todas as divisões historicamente estabelecidas e que fazia com que as pessoas se identificassem culturalmente. Depois, estabeleceram que cada pequena parte teria sua assembléia que elegeria seus deputados e esses elegeriam representantes que subiriam para as instâncias superiores até chegarem à Assembléia Nacional. Mas, então, deram maior poder político aos distritos que tivessem maior arrecadação, bem como estabeleciam quantias - começando bem pequenas e se tornando maiores na medida em que se subiam os graus - para a particação política. Tudo isso negava explicitamente as teorias de igualdade dos Direitos do Homem que tanto alegavam. Além disso, produziam distorções políticas enormes, abrindo espaço para pagamentos excessivos para gerar maior poder político, bem como colocando os ricos em situação difícil, já que o poder político de sua contribuição era distribuído no distrito e os demagogos que prometiam pilhar seus bens acabam sendo os deputados escolhidos, a partir do dinheiro dos ricos, pelos demais.
No que diz respeito aos poderes político executivos e os poderes jurídicos, também foram um desastre. O rei havia sido deposto, mas depois o mantiveram para agradar ao povo que não aceitaria não ter um rei. Todavia, ele se tornou um mero secretário da Assembléia Nacional, sendo destituído de poder de declarar guerra ou promover paz, de eleger ministros, conceder perdão, honras e afins. Basicamente, era um rei sem coroa real. E demandavam dele que lhes ajudasse a construir o país a se erguer sobre as ruínas do seu próprio reinado. É evidente que não teriam sua melhor contribuição - para dizer o mínimo. Os juízes, por sua vez, eram eleitos municipalmente para julgar segundo leis mutáveis e sem reconhecimento pleno de sua autoridade até mesmo diante das pessoas - ou sendo facilmente comprados e eleitos por vias populistas, tendo de atender aos grupos que os colocaram no poder, não havendo espaço para justiça aos vencidos nas eleições.
Uma grande porção da obra é de cunho mais econômico, analisando o barco furado que a Assembléia Nacional havia se metido. Eles basicamente fundamentaram todas as suas esperanças na venda das terras confiscadas. Como lançaram toda aquela quantidade de ofertas no mercado sem considerar a demanda, ficaram sem compradores. Mas houve todo tipo de incentivos para as compras, inclusive uma concessão de créditos. E para fazer com que todos participassem dessa pilhagem, emitiram um papel moeda que representava tal crédito e tentaram obrigar todos a usá-lo em toda movimentação financeira. Todavia, esse papel não tinha lastro e isso fez com que todo o país fosse envolvido na especulação financeira para qualquer tipo de transação, além da inevitável inflação decorrente de tal política econômica que gerou enorme prejuízo para a receita pública. Além disso, o país ficou vítima de corporativistas e especuladores financeiros que não tinham real interesse na administração permanente das terras, senão na sua compra e troca - trazendo prejuízo inclusive para a produção nelas efetuada.
Outra medida econômica desastrosa foi o cancelamento de alguns impostos mas a manutenção de outros, fazendo com que aqueles que não foram isentados tivessem de sustentar a receita pública em seu prejuízos na arrecadação, o que gerou descontentamento tal que muitas cidades passaram a recusar pagar vários impostos. Havia também, dentro dessas rejeições, o desejo de muitos camponeses de tomarem as terras dos burgueses e nobres que foram mantidos com suas propriedades - afinal, haviam sido ensinados sobre o direito à propriedade pelo uso, bem como ao fato de que aquele antigo regime não tinha validade. Aprenderam que poderiam pilhar com a própria pilhagem feita pela Assembléia. Esta, por sua vez, os ameaçava com o envio de tropas caso agissem assim, pois sua economia dependia desses proprietários comprarem as terras da igreja.
Para lidar com a receita em frangalhos, pediram doações e contaram com a consciência das pessoas, e até obtiveram surpreendentes contribuições que, no entanto, estavam longe de ser suficientes. Tentaram manter algum crédito omitindo dados da manutenção das terras e fazendo promessas com as quais não poderiam lidar, como a própria manutenção do clero expropriado - que, posteriormente, foram descobrir ser mais onerosa do que o que poderiam obter com a venda de suas terras! Assim, estavam num abismo sem fim e caminhando a passos largos para a completa bancarrota.
Burke também fala sobre a situação catastrófica do exército. Os soldados haviam se tornado insubmissos, rebeldes e sediciosos, e proclamavam abertamente suas ideias subversivas. O exército, pois, estava se tornando fora de controle. O rei havia sido autorizado a lhes chamar à consciência, mas ignoraram o rei. O ministro da guerra pediu uma medida da Assembléia que mandou novos pedidos do rei para igualmente serem ignorados. Como se isso não fosse suficientemente tolo, decretaram festas para que os soldados se unissem às pessoas das cidades, na esperança de que isso lhes restauraria o espírito de submissão. Todavia, as próprias cidades organizavam suas milícias e eram igualmente sediciosos. O efeito só poderia ser o de fazer os soldados ainda mais inflamados. Assim, o próprio exército estava fugindo do controle. Mas era o exército a arma daquele governo despótico. O seu primeiro recurso. Os soldados, inclusive, estavam começando a reivindicar o direito de elegerem e demitirem os seus comandantes, afinal foram ensinados que os Direitos dos Homens conferiam a todos os homens o direito de escolherem quaisquer autoridades, e não podiam ver porque eles não teriam esse direito. Burke prevê que a única alternativa acabaria sendo um militar respeitado e poderoso para colocar ordem no exército, mas que poderia ele mesmo se voltar para dominar o país.
2) Principais Doutrinas Expostas
Princípios conservadores
a) Tradição contra Inovação: Burke defende muito bem, em várias porções, que a inovação absoluta, baseada na pura especulação bem como no desprezo por tudo que não era novo (argumentum ad novitatem) era evidentemente um erro. Ignorar tudo o que os homens produziram era algo soberbo e tolo. Há no livro, com efeito, alguns bons argumentos em prol do respeito à tradição.
b) Conservação e Progresso: Contra o que se possa pensar, Burke nota que o princípio de conservação não é uma perspectiva de imutabilismo, i. e., a ideia de que as coisas não devem mudar nem que não haja progresso - negando igualmente, portanto, o reacionarismo que vê no passado a perfeição -, mas sim que o verdadeiro progresso ocorre com o proveito do que há de bom na herança recebida.
c) Política da Prudência: Outra doutrina conservadora importante é a da prudência na política. Isso quer dizer que, primeiro, há mudanças que devem ser graduais. As pessoas estabeleceram suas vidas nas formas instituídas da sociedade e uma mudança abrupta poderia causar estranhamento e prejuízos. Mas, mais do que isso, a mudança gradual é necessária para que não seja tarde demais para corrigir algum passo equivocado que foi dado, algum problema que não havia sido previsto nos planos e que se ocultava no percurso.
d) Liberdade e Virtude: Burke diz, logo no início - bem como mais para o fim - que não apreciava a liberdade dos franceses, pois era uma dádiva não acompanhada de virtudes e que, por isso, se tornava um vício. A pura liberdade destituída de virtudes e valores é pura animalidade e redução à escravidão ao barbarismo e incivilidade.
e) Nacionalismo: Burke fala que o amor à pátria começa pelo amor aos mais próximos, a identificação afetiva para com a vizinhança, o bairro, a cidade até alcançar o país. Havia, contido nisso, um vínculo cultural. Este é um nacionalismo ‘de baixo para cima’, sem propósitos senão a conservação dos valores e virtudes, bem como das conquistas e das coisas apreciadas. Portanto, como bem nota Scruton no ‘Como Ser um Conservador’, absolutamente distinto do nacionalismo ‘de cima para baixo’ dos regimes totalitaristas do século XX.
f) Instituiçẽos: Igreja, família, Estado, Constituição e afins são importantes instituições que preservam os valores, virtudes e demais heranças de uma cultura e que, portanto, deveriam ser preservadas - havendo espaço para reformas e adaptações em algumas, ou melhor, exceto na família.
g) Dificuldade de se Construir: Construir algo demora. As grandes coisas demandam esforço e tempo. Mas destruir é, por sua vez, algo muito mais fácil e mais rápido. Por isso, é preciso muita cautela quando se vai destruir qualquer coisa, pois a substituição pode, se for tão boa quanto o que foi perdido, demorar muito para ficar pronta.
Estratégias Progressistas
Curiosamente, vemos muitas das estratégias propostas por muitos progressistas nos dias de hoje já existentes naquela época. Vejamos brevemente algumas.
a) Domínio da Opinião Pública: Aqui a noção de ‘ocupação de espaço’ é perfeitamente exposta no ato de divulgação do ateísmo e silenciamento dos cristãos e/ou dos anti-revolucionários conservadores.
b) Caos para a Ordem: Num dado momento, Burke cita Priestley e os revolucionários dizendo que sabiam que algum caos adviria de suas primeiras ações políticas, mas que desejavam que isso ocorresse para que o povo acatasse sua proposta de revolução absoluta ao invés de dar ouvidos a um possível reformista. Essa é uma estratégia de alguns progressistas modernos que também querem implodir a cultura ocidental e o capitalismo para, então, surgirem como os ‘salvadores da pátria’.
c) Direitos dos Homens: Basicamente a mesma desculpa em nome dos Direitos Humanos para justificar todo tipo de barbárie e subversão. Burke deixa claro que era a favor dos verdadeiros direitos dos homens, incluindo aí o direito à propriedade - que era justamente o que haviam ignorado na Revolução.
d) Difamação para justificar a Agressão: Burke, em mais de uma porção, demonstra como distorciam os fatos, exageravam os defeitos, ignoravam e omitiam as qualidades e até mesmo inventavam coisas dos que queriam prejudicar para dar uma justificativa pública de suas agressões - bem ao espírito ‘antifa’ dos nossos dias.
e) Dívida Histórica: Apelavam para uma suposta dívida histórica institucional para justificaram injustiças cometidas no presente.
f) Futurismo: Há, além da rejeição da tradição, uma forma de justificar todo tipo de males do presente em nome de uma causa em prol de um futuro glorioso.
REFERENCIAL TEÓRICO
Burke honra seus elogios à tradição remontando constantemente aos clássicos. Horácio, Juvenal e principalmente Cícero são nomes que poderão ser encontrados em várias páginas. Aristóteles também aparece. Embora o autor não cite, evidentemente está presente as influências de Locke, Hume e Smith.
O autor se vale também, como referência para fundamentar suas acusações, de atas da Assembléia Nacional, bem como dos trabalhos de Necker e Calonne - que participaram da Assembléia. Quanto à Sociedade da Revolução, cita principalmente o discurso-livro de Richard Price.
Burke estava atualizado quanto à literatura progressista. Conhecia bem Rousseau, Diderot, D’Alembert e Helvétius. Cita também Priestley e outras sombras do ateísmo inglês de sua época.
O autor também se vale de sua experiência na política Inglesa, lidando com a história e documentos da constituição inglesa. Mostra grande desenvoltura, igualmente, no que diz respeito à história da Inglaterra e da França, bem como faz referências constantes à história romana.
RECOMENDAÇÃO
Qualquer um que queira entender o que é o conservadorismo tem a obrigação moral de ler este livro. Seja para tentar criticar ou mesmo para defender, a leitura da obra enriquecerá o repertório para a discussão das ideias políticas e da própria sabedoria pessoal para enxergar as coisas. O livro é tão importante que nos parece irresponsabilidade discutir política, direita e esquerda, conservadorismo e progressismo, sem lidar com esta obra de Burke.
O livro também é absolutamente necessário para se discutir a própria Revolução Francesa. Há acusações graves demais para serem ignoradas e para que se celebre esta revolução com a consciência limpa. Inclusive, essa imagem que temos da revolução já era corrente na época de Burke e ele praticamente prenunciou que os revolucionários e progressistas franceses tentariam vendê-la. Conseguiram. E enquanto não lermos este livro, continuarão tendo êxito.
Entretanto, o livro pode ser árido - principalmente para quem não tem a menor ideia dos fatos, nem que seja os da versão progressista, concernentes à Revolução Francesa. Há, também, um encadeamento de raciocínios que às vezes não é tão claro à primeira vista e que demanda um deter-se atento em várias porções. Não obstante, todo esforço será recompensado.