Leia com a gente 03/02/2018
Esqueça tudo o que você já leu sobre vampiros e leia esse livro
“York levantou a cabeça, e os dois olhares se cruzaram. Até cumprir o resto de seus dias, Abner Marsh relembraria aquele momento, aquela primeira vez em que olhou dentro dos olhos de Joshua York.” (p.8)
O mito do vampiro existe em muitas culturas, das mais variadas civilizações. Lendas sobre criaturas imortais, que vagueiam na escuridão da noite à procura de vítimas para aplacar sua sede de sangue estão presentes no imaginário popular e reflete-se também na literatura.
Quem nunca ouviu falar do famoso Conde Drácula, retratado por Bram Stoker, do sedutor Lestat, criado por Anne Rice chegando até aos representantes mais recentes como Edward Cullen, da saga Crepúsculo ou Damon e Stefan, os charmosos irmãos Salvatore da série Diários de um Vampiro?
Pois esqueça tudo o que você já viu, leu ou ouviu falar sobre vampiros. Ao escrever Sonho Febril, o autor George R. R. Martin consegue uma proeza e tanto: desconstruir o mito do vampiro para criar algo diferente de tudo o que você já viu. Prontos para mergulhar nesse universo tão singular criado por Martin?
A trama se passa no século XIX, começando mais precisamente em 1857, nos Estados Unidos. A história é toda ambientada no universo das embarcações a vapor, o meio de transporte mais popular da época e nosso protagonista é Abner Marsh, um típico capitão de barco, que viveu a vida toda cortando os rios do país, pilotando embarcações a vapor.
Após sofrer alguns revezes, Marsh está a beira da falência quando recebe uma proposta de sociedade irrecusável para construir e pilotar a embarcação com a qual sempre sonhou, o maior e mais veloz barco a vapor que já se viu. Marsh aceita e torna-se sócio de Joshua York, um homem misterioso de hábitos excêntricos. O barco é batizado de Fevre Dream e inaugarado com muita pompa. Tudo parece estar indo muito bem, mas conforme Marsh começa a conviver com Joshua e seus estranhos amigos mais ele começa desconfiar que algo muito estranho cerca a vida de seu sócio. O cético Capitão Marsh se vê mergulhado em fatos que abalam suas crenças e lhe apresentam uma realidade que ele nunca supôs existir.
“Abner Marsh tinha intenção de recusar a oferta de York. Precisava muito do dinheiro, mas era um homem desconfiado, não habituado a mistérios, e York estava pedindo para ele deixar muita coisa por conta da fé. A oferta lhe parecia boa demais. Marsh tinha certeza de que algum perigo estava à espreita em algum lugar, e que ele só pioraria as coisas se aceitasse.” (p.15)
O livro foi escrito na década de 80 e apresenta um tipo de terror diferente do que estamos habituados hoje em dia. Os acontecimentos vão se insinuando, crescendo até que no momento certo se revelam. Martin vai construindo um cenário de horror que começa muito mais em nossas mentes do que em cenas explícitas. Por mais que o leitor esteja preparado para encontrar o chamado “povo da noite” na história, quando eles realmente se mostram é de arrepiar. Há também todo um jogo por parte do autor sobre quem é realmente o vilão. O resultado é incrível, pois deixa uma dúvida e uma ansiedade em quem está lendo que só será sanada na segunda metade do livro, quando o horror realmente começa.
“Fez-se um silêncio de chumbo por um momento. Então, baixinho, Valerie disse: – O gado. É como a gente chama vocês, capitão. O gado.” (p.121)
A narrativa de Martin tem um ritmo próprio que é sua marca registrada, o autor nos arrasta para dentro do universo da história. As descrições dos barcos a vapor, dos rios pelos quais navegam e do contexto histórico da época são cruciais para se entender a trama. Fiquei sabendo de muitas coisas que eu não conhecia, como por exemplo como funcionam os barcos a vapor, como é a rotina dentro de uma embarcação e como viviam as pessoas da época, tudo de uma maneira leve que não cansa o leitor.
“Era difícil de discernir, lá do outro lado, em cima do gaveteiro. Mas Marsh não conseguia tirar isso da cabeça. O pano com o qual York secara as mãos tinha manchas. Manchas escuras. Avermelhadas. E elas se pareciam demais com manchas de sangue.” (p.89)
Além da trama em torno dos vampiros, o autor utiliza o contexto histórico para criticar a sociedade escravagista americana do século XIX. Eu diria que Martim faz uma alegoria da relação entre vampiros e humanos com a relação de brancos e negros. A guerra entre humanos e vampiros é colocado como uma batalha entre raças e o autor utiliza isso para criticar a divisão da sociedade da época entre raças, representada pela escravidão.
“Também nos organizamos, começamos a pensar e a planejar, e por fim nos fundimos com vocês totalmente, vivendo à sombra do mundo que sua raça construiu, fingindo que éramos da sua espécie, saindo furtivamente à noite para saciar nossa sede com o seu sangue, escondendo-nos de dia com medo de vocês e de suas vinganças. Esta tem sido a história da minha raça, o povo da noite, ao longo da maior parte da história.” (p. 167)
Vale ainda destacar a construção muito bem feita dos protagonistas: o Capitão Abner Marsh e o enigmático Joshua York. Dois personagens que tem, a princípio, uma natureza antagônica, mas que vão construindo uma relação que vai da desconfiança, passa pela divergência e por fim acaba em laços sólidos.
O epílogo da trama é poético, com um desfecho que desperta algumas reflexões sobre como a amizade pode surgir e criar raízes profundas, mesmo entre seres tão diferentes.
“O rio corria escuro como o pecado, sem a luz da lua ou das estrelas acima dele.” (p.74)
Se você se interessa por histórias de vampiros então precisa ler esse livro. Mas se você não gosta muito das criaturas da noite sugiro que leia também. Os vampiros de George R. R. Martin são diferentes de tudo que você já viu.
Até a próxima bibliófilos e continuem lendo com a gente!
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