Ana Aymoré 20/07/2020Tirza e a urdidura do enigmaEm outra resenha, a propósito de O filho de mil homens, comentei, aludindo a um texto teórico bem conhecido, de Anatol Rosenfeld, alguns breves pontos acerca do processo de composição de personagens ficcionais. Para Rosenfeld, "A ficção é um lugar ontológico privilegiado", que nos permite não apenas contemplar mas, de algum modo, viver outras existências que não as nossas, possibilitando-nos essa experiência tão necessária da empatia, ao nos colocarmos no lugar do outro.
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No entanto, sublinha o teórico, isso não significa que esse aprendizado não possa ser igualmente relevante quando as personagens ficcionais são modelos em negativo, ou seja, quando se afastam diametralmente de nossas próprias convicções e preceitos morais. Pelo contrário, as grandes obras literárias apresentam-nos frequentemente seres problemáticos, inescrupulosos, criminosos, sádicos, mesquinhos, egoístas, ou, ainda, que jamais, mesmo depois de se chegar à palavra final, serão totalmente transparentes para nós, "refazendo", ainda segundo Rosenfeld, "o mistério do ser humano".
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Quando Jörgen Hofmeester, o protagonista do romance de Grunberg, expressa à esposa seu inconformismo pelo fato do namorado da filha Tirza assemelhar-se inquietantemente a um dos terroristas do onze de setembro, e que, portanto, teria o mesmo "ódio de nós", a mulher retruca: "Mas quem somos nós, então, Jörgen?" Nessa pergunta encontra-se o cerne de Tirza, e esse cerne é desvendado, ao longo do romance, como se fosse um quebra-cabeças dotado de um singular dinamismo, em que cada encaixe torna-se, adiante, duvidoso ou insuficiente, criando zonas de opacidade nunca definitivamente resolvidas.
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Levei mais de uma centena de páginas para me convencer de que lia um bom livro, e só no terço final compreendi que lia um livro extremamente bem urdido. E foi necessário chegar ao desfecho para compreender não só a referência à Tirzah da Torá, mas também o intertexto genial com o poema de Blake, To Tirza. Todas as pistas para o enigma do romance estão ali, ocultas diante dos nossos olhos, como a carta roubada do conto de Poe.