Gabriel 11/11/2018
(Postado originalmente em www.365coresdouniverso.com.br)
35 dias. Esse foi o tempo que precisei para mergulhar nas 1510 páginas de um dos livros que mais me marcou e me levou refletir sobre a vida e questionar a sociedade em que estamos inseridos. Enquanto fazia essa resenha, pude perceber que, inconscientemente, durante todo esse período conturbado que foram as eleições de 2018, acabei lendo livros voltados para esse viés político, social e cultural. Finalizar o mês com Os Miseráveis foi o a cereja do bolo e sinto que foi o momento certo para tê-los em mão. Um fato curioso que gostaria de mencionar para vocês é que conheço alguns leitores que possuem um certo receio quando à leitura de calhamaços. Confesso pra vocês que um primeiro momento também me assustou, pois, até então, só havia realizado a leitura de IT com as suas boas 1100 páginas. Geralmente para a leitura de obras como essas, requer um nível maior de atenção e envolvimento com a história e eu não sabia se iria conseguir me identificar o suficiente com a narrativa a ponto de segurar a leitura por tantas páginas. Meu outro medo era com relação a escrita e vocabulário utilizado por Victor. Por ser uma obra histórica e um dos monstros literários mais influentes do nosso século, imaginava que seria preciso um dicionário e muita, muita atenção, porém, surpreendentemente foi uma das leituras mais fáceis, ricas e completas que já tive a oportunidade de ler e não posso deixar de agradecer e parabenizar o excelente trabalho de Regina Célia de Oliveira na tradução do texto, adaptando de maneira coesa e moderna, sem perder o brilho e a complexidade do texto original. Deixo aqui o meu singelo obrigado a esses trabalhadores cuja profissão muitas vezes não é lembrada, mas e fundamental para que possamos conhecer as mais diversas obras advindo dos lugares mais remotos do mundo.
Ao finalizar a leitura, preciso contar pra vocês que precisei de um bom tempo para conseguir de fato escrever essa resenha: Eram tantos sentimentos e coisas que queria abordar nessa resenha que sabia que iria precisar primeiramente digerir e entender melhor tudo que aconteceu para enfim trazer um texto claro e imparcial. O livro é, em sua essência, impecável do início ao fim, dando voz à uma parcela da população que desde que o mundo é mundo é menosprezada, marginalizada e oprimida: Pobres, mulheres, negros, prostitutas, crianças e velhos ganham destaque em uma narrativa que trás a França envolta em uma nuvem de guerras e conflitos liderados por esses mesmos miseráveis em busca de igualdade, liberdade e melhores condições de vida. A obra desde o começo deixa claro as críticas à sociedade que viriam a seguir, retratando a construção da sociedade e as estruturas sociais da época, dos mais ricos e nobres, até os mais miseráveis. As diferenças entre as classes são descritas de maneira quase explícitas, evidenciando o luxo dos casarões e palacetes e a miséria das cabanas e hospedagens.
"Quer dizer, o fim da prostituição para a mulher, o fim da escravidão para o homem, o fim da ignorância pela criança. Votando pela república, votei por tudo isso. Votei pela fraternidade, pela concórdia, pela aurora. Trabalhei pela queda dos erros e preconceitos. O desmoronamento dos erros e preconceitos produz a luz."
Iniciamos a leitura conhecendo Jean Valjean, um homem que foi preso e sentenciado a 19 anos de prisão por roubar um pão para se alimentar. Recém liberto da cadeia, Jean não possui qualquer expectativa de que algo bom aconteceria à ele. Renegado por todos, encontra abrigo, carinho e alento na casa de um bispo que, mesmo sem saber, desperta um sentimento muito maior em Jean, iniciando assim seu processo de redenção. Talvez esse seja o fato que mais tenha me chamado atenção durante a leitura: Ao longo de suas mais de 1500 páginas, é lindo ver a maneira como os personagens vão se desenvolvendo e evoluindo de acordo com suas vivências, experiências e o meio em que estão inseridos. Em minha opinião, Os Miseráveis não é uma obra que coloca a Revolução Francesa em primeiro plano: É uma obra política, filosófica e social cujo objetivo é descrever a forma com que cada um dos personagens se relacionam entre si e a forma como a guerra e a miséria são capazes de alterar um ser humano. Tomando Jean como ponto inicial de análise, vemos um homem totalmente desacreditado da vida, lutando e seguindo um árduo caminho em busca de sua redenção pessoal.
Como citei acima, a escrita do livro é extremamente fácil e fluída. Apesar de ser um baita livro (literalmente falando), não tive problema algum em lê-lo, levando um pouco mais de 1 mês para concluir suas páginas. Para manter seu leitor interessado, Victor utiliza das mais diversas artimanhas que funcionam muito bem: Digressões, mistérios, suspense, ação. O livro é dividido em cinco partes distintas que trazem um personagem específico como protagonista. É, a partir dele, que Victor se aproveita para tecer suas críticas veladas a religião, totalitarismo, divisão de renda, fome, miséria, solidão e abandono enquanto a história se desenvolve. Falando dos personagens, todos são marcantes e muito bem construídos, é fácil você se apegar a cada um deles e, consequentemente, sentir na pele suas dores e amarguras.
"- Sabe, eu penso: tirando só cinco horas para dormir, e trabalhando todo o resto na costura, sempre vou conseguir ganhar meu pão. E também, quando a gente está triste, a gente come menos. É isso, sofrimentos, preocupações, um bocadilho de pão daqui, mágoas dali, tudo isso vai me alimentar."
Apesar dessas cinco partes bem definidas que permeiam a história, em minha opinião, o livro se divide em três grandes momentos: O primeiro é utilizado por Victor para criar toda a ambientação da história e desenvolver seus personagens, apresentando a relação entre cada um deles. Temos um aprofundamento muito maior a respeito do perfil psicológico de Fantine, Marius, Cossete, Javert, entre outros. O segundo momento da história é totalmente focado na revolução e nos conflitos que culminam na grande batalha de 1832. Nesse ponto, além das críticas que o autor já havia feito com relação a sociedade, entra em cena a discussão a respeito de como as mazelas e a miséria da guerra afetam cada um dos personagens e a forma como os mesmos encontram de seguir em frente. O último momento do livro apresenta os desfechos das histórias particulares dos personagens, finalizando a história com chave de ouro.
Sei que até aqui não consegui ser imparcial perante à grandiosidade da narrativa. Vejam bem, eu nunca tive contato com nenhuma adaptação cinematográfica da obra porque queria pegar o livro sem a menor pretensão sobre o que eu iria encontrar em suas páginas. Devo dizer que foi a melhor decisão que tomei em minha vida e por diversos momentos me emocionei, ri e chorei com a narrativa que, como citei, é muito fluida e simples de ler. Porém, vamos destacar alguns pontos negativos (mas que de fato não comprometem a história): Como eu citei acima, todos os personagens possuem alguma ligação entre si e em algum momento da história, se cruzarão. As "conveniências" criadas por Victor algumas vezes soam um pouco forçadas e superficiais, pois elas se encaixam bem demais, possibilitando que a história se desenvolva. Não me entendam mal, eu realmente amei a história, seus personagens e suas relações, contudo, em alguns momentos me incomodava um pouco. Por exemplo, para quem já leu, vocês sabem que no final do livro há uma cena específica no esgoto em que um certo personagem está lá (outrora já ligado com a narrativa de Jean) com exatamente o que ele precisava. Esse tipo de conveniência me incomoda um pouco, mas não é nada que prejudique de fato o andamento da história.
"Morrer não é nada; horrível é não viver."
O autor também utiliza durante sua narrativa diversas digressões para apoiar a construção da história e essa é de longe a parte mais chata do livro. Algumas são bem famosas, como a que fala sobre a batalha de Waterloo e a que conta sobre a construção do sistema de esgoto de Paris. Essas não fiquei incomodado de ler, mas algumas outras que falam sobre os hábitos das freiras ou sobre o moleque de Paris fiquei bem entendiado lendo. Todas são bem longas, cerca de 50 a 100 páginas e é preciso um pouco de paciência para concluí-las, contudo, nenhuma delas está no livro à toa, e contém alguma espécie de crítica ou gancho que será utilizado por Victor em algum ponto futuro da história, portanto, é importante prestar atenção para não perder nenhum detalhe.
Eu não tenho palavras para descrever a beleza que representa a história de Os Miseráveis. O final do livro é totalmente devastador, mas encerra de maneira brilhante uma história sobre amor, desespero, perda e esperança. O livro escrito em 1862 nunca esteve tão atual a trazer as críticas a nossa sociedade, que continua desigual até os dias de hoje. O livro possui uma forte lição moral a respeito do bem e do mal, do certo do errado e do "politicamente correto". Conhecemos a morte, a miséria e a dor de perto, mas também somos testemunhas do amor, da pureza e da força que as pessoas encontram para lutar pelo o que é certo. OsMiseráveis representam um grito de uma sociedade excluída e que por anos se manteve calada e marginalizada. É uma leitura triste, densa, cruel, literal e miserável, porém, ao mesmo tempo, é uma lição de empatia, de amor ao próximo e de lealdade.