Sebo Por Todo C 15/05/2017
Um escritor com pleno domínio da narrativa
Estamos no fim do século XVI, Istambul, em um ateliê de pintores miniaturistas que segue os preceitos do Islã, sendo o mais básico e fundamental deles é que toda a arte figurativa constitui uma afronta.
Porém, a arte retratista veneziana e a pintura renascentista já influencia a uns poucos por sua técnica artística tão diversa do que prega o islamismo. Tio Efêndi é um deles. Usa de sua influência junto ao sultão para sugerir uma obra ilustrada ao estilo estrangeiro. O sultão, então, encomenda ao Tio Efêndi um livro que pretende dar de presente ao doge de Veneza, com pinturas inspiradas na arte otomana usando algumas técnicas venezianas, para com isso demonstrar a superioridade islâmica ao mundo ocidental.
O projeto corre em absoluto segredo com Tio Efêndi coordenando o trabalho de quatro dos mais talentosos miniaturistas: Cegonha, Borboleta, Oliva e Elegante Efêndi.
Dezenove narradores se alternam para compor esse romance histórico permeado pela arte, filosofia e religião e, também, amor, ciúme, rivalidade, inveja, cobiça. Quer mais? Assassinatos e uma a intensa investigação.
O que dizer desse livro?
É um livraço.
É pouco?
Então, o que dizer de Orhan Pamuk?
O autor tem pleno domínio da narrativa.
E isso é um grande elogio. Se não acredita, pergunte a algum amigo escritor e veja o que ele responde.
Além disso, Orhan Pamuk condena publicamente o genocídio de armênios ocorrido durante a Primeira Guerra Mundial e atua na defesa dos direitos políticos dos curdos. Sua atuação internacional nessas duas questões o levou a ser processado pelo governo turco, em caso que provocou polêmica internacional.
Bom, eu já disse que são dezenove narradores. O que eu não disse é que, entre eles, há o "Eu sou meu cadáver" e "Eu, o Cão" e "Serei chamado Assassino" e, por que não, "Eu, o Diabo", de quem extraio um trecho da página 376 / 377. É um trecho um pouco longo, mas vale a pena:
"Comecemos do começo. Todo o mundo se agarra ao fato de que fiz Eva comer o fruto proibido, mas esquecem como tudo isso começou. Não, não começou tampouco com minha arrogância diante de Alá. Antes de tudo o mais, houve essa história de Ele nos apresentar o homem e querer que nos inclinássemos diante deste, o que encontrou minha legítima e decidida recusa, embora os outros anjos tenham obedecido. Vocês acham correto que, depois de me ter criado do fogo, Ele exija que eu me incline diante do homem, que Ele criou do mais reles barro? Ora, meus irmãos, digam a verdade, em sã consciência! Está bem, sei que vocês já pensaram no assunto mas temem que o que for dito aqui não fique apenas entre nós: Ele vai ouvir tudo e um dia vai lhes pedir explicações. Tudo bem, não me interessa saber por que Ele lhes deu uma consciência assim. Admito, vocês têm por que ter medo, portanto vamos deixar pra lá essa questão do barro e do fogo. mas tem uma coisa de que não me esqueço nunca, sim, uma coisa de que sempre me orgulharei: nunca me inclinei diante do homem.
Ora, é precisamente o que fazem os europeus. De fato, não só eles fazem questão de retratar e de exibir todos os detalhes daqueles grão-senhores, daqueles padres e daqueles ricos mercadores, e até das mulheres deles -- cor dos olhos, textura da pele, contornos dos lábios, efeitos de sombra de um decote, rugas na testa, anéis nos dedos, até os tufos de pêlo que saem das orelhas --, mas ainda por cima colocam essas pessoas no centro de seus quadros, que exigem igual fazem com seus ídolos, como se o homem fosse um objeto de culto e todos devessem se prosternar diante dele! Ora, porventura o homem é tão importante assim para que desenhem todos os seus detalhes, inclusive sua sombra? Se desenhássemos as casas de uma rua de acordo com a falsa percepção do homem, isto é, diminuindo de tamanho à medida que estão mais distantes, não seria usurpar para o homem o centro do mundo, que é o lugar que cabe a Alá? Bem, Ele, o Todo-Poderoso, em sua clarividência, saberá julgar melhor que eu, mas acho que todos compreenderão que é um absurdo me culpar pela ideia de fazer esses retratos, logo a mim que sofro as consequências -- a dor indescritível do exílio, a perda da graça de Alá, de quem eu era o favorito, tornando-me objeto de pragas e injúrias -- da minha recusa original de me inclinar diante do homem. Mais razoável seria fazer como certos mulás e pregadores esclarecidos que me apontam como responsável pelas crianças brincarem com suas partes e as pessoas peidarem."
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