Ricardo Rocha 03/12/2010
Frágil realidade
Sempre citado como a maior injustiça cometida pela Academia que concede o Nobel, Borges não pode ser considerado politicamente correto e por isso talvez sequer o seja literariamente. Incomoda, creio. Essa mania do Outro, de espelho, de referências exteriores do que jamais existiu. Seu desprezo pelo romance também não pode ser a coisa mais correta e lisonjeira para uma geração que, se ama livros, basicamente, ama romances. Porém, para Borges, “desvario laborioso e empobrecedor é o de compor extensos livros; o de espraiar em quinhentas páginas uma idéia cuja perfeita exposição oral cabe em poucos minutos”. Não concordo. Mas não dá por isso para ignorar a obra dele, basicamente feita de contos (ainda que boa parte longos contos). É o caso de Ficções.
Põe por terra toda pretensão humana de organização, desdenha dos que se tornam adeptos desses sistemas. Contrapõe a isso uma realidade fantástica e como tal se não terá poder de edificar, tampouco destruirá as pessoas, como o nazismo ou o cartão de crédito. E a força dessa fantasia-realista ou seja lá o que for, naturalmente, não está na teoria, mas na forma como se apresenta, a saber, na genialidade, na elegância do texto, na engenhosa verossimilhança de algo que não é verdadeiro. Num de seus contos mais legais – para poucos leitores, imagino, para muito poucos leitores – aparece a frase “copulation and mirrors are abominable” e fico pensando se não são abomináveis, se forem mesmo, por seguirem um mesmo princípio: você e você, você e um outro, você e um outro que é você. O que seria o oposto de você, simplesmente, na plenitude de uma solidão não refletida.
Borges pode ser muito chato ou muito fascinante. Dependerá da disposição de quem está lendo em descobrir em si esses mecanismos de frágil realidade e usufruir do fato de destruí-la com a força de um livro.
Trecho de “Tlön, uqbar, orbis tertius”
“Devo à conjunção de um espelho e de uma enciclopédia o descobrimento de Uqbar. O espelho inquietava o fundo de um corredor numa chácara da rua Gaona, em Ramos Mejía; a enciclopédia falazmente se chama The Anglo-American Cyclopaedia (New York, 1917) e é uma reimpressão literal, mas também tardia, da Encyclopaedia Britannica de 19O2. O fato ocorreu faz uns cinco anos. Bioy Casares jantara comigo naquela noite e deteve-nos uma extensa polêmica sobre a elaboração de um romance em primeira pessoa, cujo narrador omitisse ou desfigurasse os fatos e incorresse em diversas contradições, que permitissem a poucos leitores – a muito poucos leitores – a adivinhação de uma realidade atroz ou banal. Do fundo remoto do corredor, o espelho nos espreitava. Descobrimos (na alta noite essa descoberta é inevitável) que os espelhos têm algo de monstruoso. Então Bioy Casares lembrou que um dos heresiarcas de Uqbar declarara que os espelhos e a cópula são abomináveis, porque multiplicam o número dos homens. Perguntei-lhe a origem dessa memorável sentença e ele me respondeu que The Anglo-American Cyclopaedia a registrava, em seu artigo sobre Uqbar. A chácara (que havíamos alugado mobiliada) possuía um exemplar dessa obra. Nas últimas páginas do volume XLVI demos com um artigo sobre Upsala; nas primeiras do XLVII, com um sobre Ural-Altaic Languages, mas nem uma palavra a respeito de Uqbar. Bioy, um pouco perturbado, consultou os volumes do índice. Esgotou em vão todos os verbetes imagináveis: Ukbar, Ucbar, Ookbar, Oukbahr... Antes de ir embora, disse-me que era uma região do Iraque ou da Ásia Menor. Confesso que assenti com certa incomodidade. Conjecturei que esse país indocumentado e esse heresiarca anônimo eram uma ficção improvisada pela modéstia de Bioy para justificar uma frase. O exame estéril de um dos atlas de Justus Perthes fortaleceu
minha dúvida.”