Antonio Luiz 12/08/2010
Tríplice proveito
Todo leitor dotado de cultura, humor e algum conhecimento de contos de fadas e fantasia corre sério risco de se viciar em Terry Pratchett. Cumpridos os pré-requisitos, pouco importa se o leitor odeia O Senhor dos Anéis, Conan, Wicca e vampiros ou adora tudo isso: os frouxos de riso estão garantidos.
Não é paródia escrachada ao estilo de "O Fedor dos Anéis" de Henry Beard e Douglas Kenney, nem o humor frio e nonsense de "O Guia do Mochileiro das Galáxias" de Douglas Adams e seqüências. Pense-se antes numa atualização das sátiras de Jonathan Swift às histórias de utopias e terras exóticas nas "Viagens de Gulliver", adicionando-se uma dose generosa de compreensão e simpatia pela condição humana.
Dos 36 volumes já escritos da série Discworld, nome do mundo mítico-medieval-vitoriano que Pratchett pôs no lombo da tartaruga gigante A’tuin, doze foram publicados no Brasil, o mais recente dos quais é "Quando as Bruxas Viajam". Não é o mais indicado para o recém-chegado, pois as primeiras páginas pressupõem algum conhecimento prévio da série, mas é um bom exemplo.
Três bruxas feiosas montam em suas vassouras para salvar Emberella, personagem de um famoso conto de fadas, das garras de uma terrível fada-madrinha. Dito assim, soa como "Shrek", mas não é para crianças. Além de recorrer a humor adulto em vários dos sentidos dessa expressão (inclusive o popular, embora com sutileza), embute reflexões aproveitáveis sobre o lado negativo de se tentar impor modelos de felicidade.
As histórias são hilárias a não mais poder, mas os personagens de Pratchett são mais do que caricaturas. É possível se identificar com seus problemas, crenças e aflições e encontrar neles os contra-sensos da vida real. Por trás das máscaras cômicas, as personagens centrais têm vida, consistência e sentimentos com os quais é possível se identificar, às vezes até admirar. Seu mundo, por mágico e estranho que pareça, tem uma lógica própria e seus problemas são examinados, enfrentados e superados de maneira mais perspicaz e conseqüente do que em muito da literatura dita realista. Não se corre o risco de salvar o mundo jogando um anel em um vulcão.
Na mesma paródia se condensam a “Deusa Tríplice” do misticismo New Age – do qual as duas bruxas mais velhas zombam, mas do qual a terceira é uma ingênua devota –, o folclore europeu e tropical, o tradicionalismo da Inglaterra rural e o provincianismo do turista britânico no exterior, certo de que tudo que não se pauta por seus costumes é pervertido, perspectiva repugnante para uma e fascinante para outra.
Se o leitor nunca se perguntou sobre o que uma bruxa européia tradicional teria a dizer a uma mãe-de-santo vudu, Pratchett responde assim mesmo. A órfã não habita um reino de contos de fadas qualquer, mas uma mistura de Disneyworld com New Orleans e Haiti, com direito a pântanos, cozinha cajun e zumbis. Para quem gosta de caçar alusões e citações é um prato cheio, como toda a série. Pelo caminho, são encontrados e devidamente satirizados clichês tolkienianos, Lobsang Rampa, vampiros, turismo, barcas do Mississipi e Oz, tudo sem quebrar a lógica interna do mundo de Pratchett.
Infelizmente, algo da graça se perde na edição brasileira. Às vezes, isso é inevitável, mas a série mereceria uma tradução mais inspirada – embora desvendar a intenção do autor por trás da versão desajeitada talvez proporcione, para quem sabe inglês, uma camada extra de humor.
O realmente lamentável é que o autor, de 60 anos, foi diagnosticado em 2007 com uma forma precoce do mal de Alzheimer que pode dar um fim prematuro à sua brilhante carreira. Somando os títulos de Discworld e outros livros adultos e infantis, Pratchett vendeu 55 milhões de exemplares em 33 línguas. Em sua pátria, só J. K. Rowling é mais vendida, sem o merecer – e sem conseguir superá-lo no ranking, talvez mais importante, dos autores mais roubados das livrarias britânicas.