Liar1 04/03/2024
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Só existe um problema filosófico realmente sério: o suicídio. Julgar se a vida vale ou não vale a pena ser vivida é responder à pergunta fundamental da filosofia.
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Mas vejo, em contrapartida, que muitas pessoas morrem porque consideram que a vida não vale a pena ser vivida. Vejo outros que, paradoxalmente, deixam-se matar pelas ideias ou ilusões que lhes dão uma razão de viver (o que se denomina razão de viver é ao mesmo tempo uma excelente razão de morrer).
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Começar a pensar é começar a ser atormentado. A sociedade não tem muito a ver com esses começos. O verme se encontra no coração do homem. Lá é que se deve procurá-lo.
Matar-se, em certo sentido, e como no melodrama, é confessar. Confessar que fomos superados pela vida ou que não a entendemos.
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Cultivamos o hábito de viver antes de adquirir o de pensar. Nesta corrida que todo dia nos precipita um pouco mais em direção à morte, o corpo mantém uma dianteira irrecuperável.
A esquiva mortal que constitui o terceiro tema deste ensaio é a esperança. Esperança de uma outra vida que é preciso "merecer", outro truque daqueles que vivem não pela vida em si, mas por alguma grande ideia que a ultrapassa, sublima, lhe dá um sentido e a trai.
Tudo contribui, assim, para embaralhar as cartas. Não foi à toa que até aqui jogamos com as palavras, fingindo acreditar que negar um sentido à vida leva obrigatoriamente a declarar que ela não vale a pena ser vivida. Na verdade, não há nenhuma medida obrigatória entre estes dois juízos.
Mas será que esse insulto à existência, esse questionamento em que a mergulhamos, provém do fato de ela não ter sentido? Será que seu absurdo exige que escapemos dela, pela esperança ou pelo suicídio?
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O mundo nos escapa porque volta a ser ele mesmo. Aqueles cenários disfarçados pelo hábito voltam a ser o que são. Afastam-se de nós.
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Toda a ciência desta Terra não me dirá nada que me assegure que este mundo me pertence. Vocês o descrevem e me ensinam a classificá-lo. Vocês enumeram suas leis e, na minha sede de saber, aceito que elas são verdadeiras. Vocês desmontam seu mecanismo e minha esperança aumenta. Por fim, vocês me ensinam que este universo prestigioso e multicor se reduz ao átomo e que o próprio átomo se reduz ao elétron. Tudo isto é bom e espero que vocês continuem. Mas me falam de um sistema planetário invisível no qual os elétrons gravitam ao redor de um núcleo. Explicam-me este mundo com uma imagem. Então percebo que vocês chegaram à poesia: nunca poderei conhecer. Tenho tempo para me indignar? Vocês já mudaram de teoria. Assim, a ciência que deveria me ensinar tudo acaba em hipótese, a lucidez sombria culmina em metáfora, a incerteza se resolve em obra de arte. Que necessidade havia de tanto esforço? As linhas suaves das colinas e a mão da noite neste coração agitado me ensinam muito mais. Voltei ao meu começo. Entendo que posso apreender os fenômenos e enumerá-los por meio da ciência, mas nem por isso posso captar o mundo. Quando houver seguido todo o seu relevo com o dedo, não saberei muito mais sobre ele. E vocês querem que eu escolha entre uma descrição certa, mas que nada me ensina, e hipóteses que pretendem me ensinar, mas que não são certas.
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A partir do momento em que é reconhecido, o absurdo é uma paixão, a mais dilacerante de todas. Mas toda a questão é saber se podemos viver com nossas paixões, se podemos aceitar sua lei profunda, que é queimar o coração que elas ao mesmo tempo exaltam.
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E levando ao extremo essa lógica absurda, devo reconhecer que tal luta supõe a ausência total de esperança (que nada tem a ver com o desespero), a recusa contínua (que não deve ser confundida com a renúncia) e a insatisfação consciente (que não se poderia assimilar à inquietude juvenil). Tudo o que destrói, escamoteia ou desfalca estas exigências (e em primeiro lugar a admissão que destrói o divórcio) arruína o absurdo.
Um homem é sempre vítima de suas verdades. Uma vez que as reconhece, não é capaz de se desfazer delas.
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Volto assim a Chestov. Um comentador transcreve uma frase sua que merece interesse: "a única saída verdadeira", diz ele, "é precisamente onde não há saída no juízo humano. Senão, para que precisaríamos de Deus? As pessoas só se dirigem a Deus para obter o impossível. Para o possível, os homens bastam."
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O homem integra o absurdo e nessa comunhão faz desaparecer seu caráter essencial que é oposição, dilaceramento e divórcio. Esse salto é uma escapatória.
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O homem absurdo, pelo contrário, não realiza esse nivelamento. Ele reconhece a luta, não despreza em absoluto a razão e admite o irracional. Recobre assim com o olhar todos os dados da experiência e está pouco disposto a saltar antes de saber. Ele só sabe que, nessa consciência atenta, já não há lugar para a esperança.
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Buscar o que é verdadeiro não é buscar o que é desejável. Se, para fugir da pergunta angustiante: "O que seria então a vida?", é preciso alimentar-se, como o asno, das rosas da ilusão antes que se resignar à mentira, o espírito absurdo prefere adotar sem tremor a resposta de Kierkegaard: "o desespero."
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O tema do irracional, tal como é concebido pelos existencialistas, é a razão que se enreda e se liberta ao se negar. O absurdo é a razão lúcida que constata seus limites.
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O pecado não consiste tanto em saber (quanto a isso, todo mundo é inocente), mas em desejar saber. Este, justamente, é o único pecado do qual o homem absurdo pode se sentir ao mesmo tempo culpado e inocente. Propõe-lhe um desenlace em que todas as contradições passadas não são mais do que jogos polêmicos. Mas ele não as sentiu assim. É preciso conservar sua verdade, que consiste em não serem satisfeitas. Ele não quer a predicação.
A questão era viver e pensar com esses dilaceramentos, saber se era preciso aceitar ou recusar. Não pode ser uma questão de disfarçar a evidência, suprimir o absurdo negando um dos termos de sua equação. É preciso saber se pode viver nele ou se a lógica manda que se morra por ele. Não me interesso pelo suicídio filosófico, mas pelo suicídio, simplesmente.
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O perigo está, pelo contrário, no instante sutil que precede o salto. A honestidade consiste em saber manter-se nessa aresta vertiginosa, o resto é subterfúgio.
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Querem que reconheça sua culpa. Ele se sente inocente. Na verdade, só sente isso, sua inocência irreparável. É ela que lhe permite tudo. Assim, o que ele exige de si mesmo é viver somente com o que sabe, arranjar-se com o que é e não admitir nada que não seja certo. Respondem-lhe que nada é certo. Mas isto, pelo menos, é uma certeza.
Anteriormente tratava-se de saber se a vida devia ter um sentido para ser vivida. Agora parece, pelo contrário, que será tanto melhor vivida quanto menos sentido tiver.
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O contrário do suicida é, precisamente, o condenado à morte.
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Compreendo então por que as doutrinas que me explicam tudo ao mesmo tempo me enfraquecem. Elas me livram do peso da minha própria vida, e no entanto preciso carregá-lo sozinho.
Trata-se de morrer irreconciliado, não de bom grado. O suicídio é um desconhecimento. O homem absurdo não pode fazer outra coisa senão esgotar tudo e se esgotar. O absurdo é sua tensão mais extrema, aquela que ele mantém constantemente com um esforço solitário, pois sabe que com essa consciência e com essa revolta dá testemunho cotidianamente de sua única verdade, que é o desafio. Isto é uma primeira consequência.
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Ora, se o absurdo aniquila todas as minhas possibilidades de liberdade eterna, também me devolve e exalta, pelo contrário, minha liberdade de ação. Tal privação de esperança e de futuro significa um crescimento na disponibilidade do homem.
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Também a morte tem mãos patrícias que esmagam porém libertam.
A divina disponibilidade do condenado à morte diante do qual em certa madrugada as portas da prisão se abrem, esse incrível desinteresse por tudo, exceto pela chama pura da vida, a morte e o absurdo, são aqui, nota-se, os princípios da única liberdade razoável: aquela que um coração humano pode sentir e viver. Isto é uma segunda consequência.
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O presente e a sucessão de presentes diante de uma alma permanentemente consciente, eis o ideal do homem absurdo. Mas a palavra ideal tem aqui um som falso. Não é sequer sua vocação, é apenas a terceira consequência do seu raciocínio. Partindo de uma consciência angustiada do inumano, a reflexão sobre o absurdo retorna, no final de seu percurso, ao próprio seio das chamas apaixonadas da revolta humana.
Extraio então do absurdo três consequências que são minha revolta, minha liberdade e minha paixão. Com o puro jogo da consciência, transformo em regra de vida o que era convite à morte - e rejeito o suicídio
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Seguro de sua liberdade com prazo determinado, de sua revolta sem futuro e de sua consciência perecível, prossegue sua aventura no tempo de sua vida. Este é seu campo, lá está sua ação, que ele subtrai a todo juízo exceto o próprio.
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Os tristes têm duas razões para estar tristes, eles ignoram ou eles têm esperança.
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Aqueles que são afastados de toda a vida pessoal por um grande amor talvez se enriqueçam, mas certamente empobrecem os escolhidos pelo seu amor.
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O homem cotidiano não gosta de demorar. Pelo contrário, tudo o apressa. Ao mesmo tempo, porém, nada lhe interessa além de si mesmo, principalmente aquilo que poderia ser. Daí seu gosto pelo teatro, pelo espetáculo, onde lhe são propostos tantos destinos que lhe oferecem a poesia sem lhe impor sua amargura.
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Eles não tentam ser melhores, tentam ser consequentes. Se a palavra sábio se aplica ao homem que vive do que tem sem especular sobre o que não tem, então estes são os sábios.
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"A arte, e nada mais do que a arte", diz Nietzsche, "temos a arte para não morrer ante a verdade."
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Este mito só é trágico porque seu herói é consciente. O que seria a sua pena se a esperança de triunfar o sustentasse a cada passo?
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A própria luta para chegar ao cume basta para encher o coração de um homem. É preciso imaginar Sísifo feliz.