Ademilson 25/01/2021
A obra mais obscura
Segui para minha penúltima obra de Clarice. Esse é, até então, o livro da autora que considerei mais difícil. "O lustre" mostra uma Clarice que experimenta, que está testando sua forma de expressão, que mais tarde ficará mais sofisticada, mas que ainda se prende à algumas convenções de romance. É de uma linguagem densa, obscura, quase impenetrável. Muita coisa é apenas sugerida, na verdade, quase tudo. Tive muita dificuldade em seguir. Talvez seja isso o que frase que inicial o livro queira dizer (perfeita, por sinal): "ela seria fluida durante toda a vida". Esse "fluir", estar à mercê do ritmo, significa também sucumbir aos seus processos de pausa, de encalhe, de afogamento, de cansaço. É como uma luz que acende e apaga. Tem momentos extremamente impactantes e outros que são morosos.
Virgínia, como todas as protagonistas de Clarice, é solitária. Mas Virgínia, por exemplo, é bem diferente de Joana, do primeiro livro. Joana é êxtase e violência pura. Virgínia é apatia, frieza. Esse "ser fluido", no sentido que Lispector aplica aqui, é alguém sem firmeza. Ao mesmo tempo, me parece que a história joga o tempo todo com conceitos de essência e transmutação: o que é imutável e o que não é? podemos mudar tanto? podemos permanecer os mesmos? qual o vetor que nos faz querer mudar? por mais que nossa vida mude, será que sempre seremos arrastados ao mesmo centro? A solidão de Virgínia, ao contrário do que aparece em outras mulheres de Clarice, é algo triste e cruel. Não vejo força que venha dessa solidão. É uma clausura. É uma mulher oprimida em todos os contextos: pessoais, familiares, afetivos.
Há também Daniel. No começo do livro, Virgínia e Daniel observam um chapéu no rio. Eles presumem que seja um corpo afogado e prometem segredo. Esse elo instaura uma já presente relação entre os irmãos que é doentia e beira o incesto. Será alguém que suicidou-se ou foi assassinado? Logo após, formam a Sociedade das Sombras, na qual Virgínia tem que realizar tarefas cada vez mais perigosas, mas que ela parece gostar.
Clarice não tem um fio narrativo claro ou abastado: é um romance de movimentação interna, parágrafos longos, diálogos concisos, capítulos enormes. Tem que ter fôlego. Não sei dizer se gostei ou amei. Muitas coisas eu gostei, outras não. Mas foi o mais difícil de prosseguir, de fato, mais até que "A cidade sitiada", que ao contrário da experiência da maioria, levei de forma bem melhor. Sinto que Clarice ultrapassa tudo: a necessidade de entendimento, a necessidade de gostar, de classificar. Você simplesmente lê e, nesse processo, ou fica perturbado, ou fica indiferente. "Entender não é uma questão de inteligência e sim de sentir, de entrar em contato. Ou toca, ou não toca".
Pra finalizar, o final é perturbador. Ao contrário de todo o livro, nele vemos o destino de Virgínia com uma clareza insuportável. Muito bom! Clarice, como você é danada. Agora, só me falta A maçã no escuro, que eu já tenho, na LINDA edição nova da Rocco. Mas vou dar um tempo até pegar ele. E qual a razão de "O lustre?". O único objeto soberbo de uma casa sem alma. Inerte, mas atraente como uma aranha - aqui no sentido de volúpia. Na minha percepção, esse lustre é a torrente de desejos (perigosa) que Virgínia vez ou outra deixa extravasar, mas que acaba tolhendo por vergonha, por manipulação alheia. O lustre talvez seja esse ponto nosso, essa fagulha ainda acesa, embora quieta e oculta, que a gente mantém inconscientemente, como vital, mas com medo de que rebente em direções alheias às que pré-determinamos. Somos reféns dessa fagulha. Vivemos com medo de que ela tome a nossa direção - e assim onde vamos chegar? É o conflito do Eu com o Eu.