Vania.Cristina 10/07/2023
Imenso retrato de um povo e de um tempo
Leia com calma, sem pressa, talvez intercalando com outras leituras. Há momentos fluidos e outros mais lentos. A história intercala a voz do povo rural com a voz dos poderosos das grandes cidades. É divertidíssimo acompanhar as presepadas do povo e indigesto acompanhar a manipulação de quem detém o poder. Jorge Amado está inteiro nesse livro: a empatia; o carinho pelo povo; o humanismo de esquerda; a visão de contexto social e de microcosmo do Brasil; a sensualidade, ora poética ora dura e crua; o humor; o folhetinesco; a força da coletividade; as lutas sociais; a oralidade; a hipocrisia, a mulher empoderada ciente de sua sexualidade... O livro é cheio de easter eggs, citações de fatos reais acontecidos na época e de personagens que existiam e conviviam com Amado, como o artista Caribé. Repleto também de dualidades: a infância livre e a infância reprimida; a mulher desejada e a solteirona desprezada; a esposa bem amada e a mal amada; o religioso hipócrita e o libertador; o Deus que castiga e o Deus amoroso; a natureza e o progresso; a beleza e a poluição; o rural e o urbano etc etc etc. A personagem principal do livro é a própria cidade de Santana do Agreste e os seus moradores. Tieta, embora seja filha da cidade, na história é um acontecimento: a filha escurraçada que retorna poderosa. Outro acontecimento simultâneo que na trama tudo move, é o interesse de uma indústria em se estabelecer naquele fim de mundo, que nem eletricidade direito ou estrada asfaltada tem. Os personagens da pequena cidade não são perfeitos, são anti-heróis, cheios de vícios, de falhas e preconceitos. Cheios de minúsculas ambições, porque estamos falando de um lugar pobre e isolado. Mas ao mesmo tempo, é um povo que tem sabedoria, esperteza e dignidade. E eles tem a praia de Mangue Seco, um lugar paradisíaco. Lá é possível encontrar contemplação, descanso, paz, e estar mais próximo de Deus. Lá também estão os contrabandistas, os pescadores sem pressa, os bandos de tubarões, as ondas violentas. Por lá passam os hippies nudistas que pregam paz e amor. Em Mangue Seco, nas dunas móveis, sob a lua e as estrelas, Tieta perde e tira a virgindade. Amor e prazer se encontram com a imensidão. O livro foi escrito numa época em que não se falava em politicamente correto e Jorge Amado era um homem do seu tempo, então alguns fatos narrados podem ser problemáticos aos olhos de nosso tempo. Mas se estivesse vivo hoje, o que pensaria Amado? Medo de mudar e de mudanças ele nunca teve, afinal deixou a militância no Partido Comunista quando chegaram as denúncias de abuso do stalinismo. O que nunca deixou de lado foi a admiração pelo povo, principalmente pelas mulheres, sua cultura e sua força, e a crença nos seus direitos de luta.