Dhiego Morais 19/09/2016Um livro onde os sonhos têm vitalidadeDepois de praticamente um ano, finalmente tive a oportunidade de retornar aos Reinos Eternos. E já posso garantir: valeu cada página, cada minuto desbravando a “cidade dos sonhos”.
Último Refúgio é o segundo livro da série Reinos Eternos, porém não tem uma ligação muito forte com o volume anterior, Império de Diamante. Apesar do ponta pé da trama ter certa relação com o seu predecessor, Último Refúgio pode ser lido primeiro, sem que haja muito prejuízo. Beraldo opta por narras diferentes momentos históricos de seu mundo fantástico em tramas distintas, interconectadas por pequenas memórias, fatos e subtramas. A narrativa de Beraldo é como uma grande teia de aranha, onde os pontos que cruzam os fios representam regiões e histórias distintas, conectadas por algo muito maior.
No entanto, as pessoas que leram Império de Diamante e sentiram saudades das personagens podem ficar um pouco mais tranquilas. Nesse novo volume nós reencontramos o capitão Kasim, recém-chegado da guerra contra o Império. Último Refúgio é a cidade remanescente de um reino eterno, que, em seu auge, conquistara mundos inteiros, mas hoje vê tudo desmoronar, um destino que já não pode ser controlado.
“— Duvido. São apenas sonhos.
O comentário fez brotar um sorriso sem humor no rosto de Kasim.
— Você já deveria ter aprendido que nesta terra sonhos são poderosos.”
Último Refúgio tornou-se um berço de diversidade cultural. Assim como o seu nome sugere, a cidade funciona como um imenso abrigo àqueles que a ela e ao povo panjek recorrem. Hoje, a maior parte do que já foi uma das duas maiores metrópoles do Grande Reino Infindável convive com diferentes povos (a maioria, humanos de Myambe) e costumes. Além disso, a cidade esbanja ares sobrenaturais: magia, manipulação genética, plásticas bizarras, criaturas mitológicas; tudo isso e ainda mais atravessa as calçadas e campos de Último Refúgio.
A cidade é governada por uma casta de seres capazes de feitos extraordinários com magia. Os panjek, criaturas esguias e não muito humanas são os verdadeiros nativos do continente de Panjekanaverat e levam muito a sério a questão da pureza de sangue. Versados em três grandes Artes — Mente, Carne e Plano —, o povo vive um período de caos social, agravado pela migração de refugiados e pelos interesses gananciosos da Companhia Mercantil de Valmedor.
Vema Thevar é mais uma dos milhares de estrangeiros em Último Refúgio. Treinada na Arte panjek da Mente, Vema é quem realmente brilha durante o livro. Neta do último Oráculo de Melkat, a jovem possui dons valiosos e incomuns para aquelas terras: ali, Vema é capaz de atingir o Mundo dos Sonhos, onde as possibilidades são infinitas e os perigos podem se tornar mortais.
Vema é uma personagem muito forte, e não me refiro somente aos seus dons, mas principalmente a sua personalidade. Não é muito difícil criar laços de empatia com a onironauta.
Por outro lado, é possível sugerir que a personagem principal da nova trama de Beraldo seja justamente sua cidade fantástica, Último Refúgio. A cidade praticamente respira sozinha! Ali, os sonhos constantemente arrebentam a frágil película que mantém a realidade e o onírico separados.
“— Nós somos capazes de fazer algo que vocês não podem. Algo que você deseja muito.
— O quê?
— Sonhar.”
A mitologia criada por Beraldo no segundo volume da série é impressionante. A ideia de um lugar onde os sonhos, vidas e planos se alternam e colidem sob o controle de figuras quase divinas; onde a carne e a mente são alteradas e a realidade cria fissuras... é estonteante. Com direito a monstros tão grandes que carregam cidades em suas costas, reinos subaquáticos assustadores e criaturas extraplanares capazes de possuir corpos, Último Refúgio emerge como uma leitura obrigatória para os leitores de fantasia.
Desta vez inspirado não apenas na mitologia africana, mas também nos costumes e na história indiana, Beraldo constrói uma trama completamente exuberante, com paisagens realistas, sons e odores marcantes, além de gostos memoráveis. É, talvez, essa habilidade em transportar os seus leitores para espaços e tempos adversos, sem esquecer-se de manter um olhar crítico e atual, que torna Beraldo essencial para a literatura fantasia nacional.
É natural que em alguns momentos o leitor se sinta um tanto quanto perdido devido à explosão de informações que dão forma a toda a história do livro. Aos poucos tudo se encaixa e caminha com naturalidade. A escrita fluida do autor é um dos fatores que tornam a leitura ainda mais agradável. O acréscimo de um apêndice ou guia no final dos próximos livros seria uma sugestão para aumentar ainda mais a experiência de Reinos Eternos.
Enquanto Kasim deve investigar os indícios do nascimento de uma rebelião, Vema realiza seus trabalhos como onironauta (aquela que viaja pelo Mundo Onírico, modelando e desfazendo sonhos), junto de Sahir, que é capaz de capturar sonhos e pesadelos. Contratada por um aristocrata para criar sonhos perfeitos, Vema atravessará perigos e assistirá a ascensão de conspirações e jogos políticos capazes de levar a destruição de Último Refúgio. Pouco a pouco as tramas se interconectam e levam a um final que abre margens para muitas teorias.
Um livro onde os sonhos tem vitalidade, onde as personagens tem liberdade e onde a história gravou marcas profundas no povo. Último Refúgio é sobre a importância e o poder do sonhar para um povo que o deseja muito.
“—Depois que você visita este lugar vezes o suficiente, começa a ver coisas que ninguém mais vê.”
Virei a última página com um sorriso no rosto, pois tive a certeza de ter encontrado o meu ator nacional de fantasia favorito. Sonhar ganhou um novo significado, agora.
site:
http://www.intocados.com/index.php/literatura/resenhas/856-ultimo-refugio