Henrique Fendrich 11/09/2019
Antonio Prata na cadeira de Rubem Braga
Nem todo mundo pode ser Rubem Braga, diz o cronista. Antonio Prata se reconhece falastrão, sorrindo para todo mundo como um candidato a vereador, sabe que nunca o Rubem Braga iria gostar de um sujeito como ele. É, no entanto, à posição de Rubem Braga dos nossos tempos que a orelha e a contracapa de “Trinta e poucos” (Companhia das Letras, 2016) tentam alçá-lo – chamam-no de “principal cronista do país”, passando por cima de Luis Fernando Verissimo, e proclamam-no o maior cultor do gênero, “mais do que qualquer escritor em atividade”, o que sugere que tenha havido uma exaustiva pesquisa entre os homens das letras nesse país. Mas isso é o que as orelhas e as contracapas sempre fizeram, nem mesmo um gênero feito ao rés do chão consegue escapar das suas grandiloquências. A sorte é que o Antonio Prata é bom mesmo, dos melhores que temos no país, e há mais em comum entre ele e o velho Braga do que o fato de escreverem crônicas que são lidas hoje no jornal e amanhã são usadas para forrar o chão das obras ou para embrulhar peixes.
Talvez o humor do Prata seja mais escrachado, é verdade, pois é preciso lembrar que, por ocasião de seu nascimento, foi-lhe transmitido grande parte do material genético do velho Mario, seu pai. E, realmente, se há um único adjetivo com que podemos classificar este novo livro de crônicas de Antonio Prata será, fatalmente, “engraçado”. Isso também não será novidade, porque nós sempre o achamos engraçado, não somos como a sua mulher que precisou ficar grávida para rir das suas piadas. Boa parte de suas crônicas tem como mote pequenas situações do cotidiano das quais o escritor sugere teorias e filosofias que, a despeito de certas verdades, conduzem ao absurdo. Um guarda-chuva, as gavetas de talhares, os controles-remotos, o chuveiro elétrico, viram, sob o seu olhar, material para galhofeiras análises sociológicas, psicológicas, cosmológicas, Deus sabe o quê.
Claro que, por trás de seu humor, também é possível adivinhar uma reflexão crítica dos caminhos que a sociedade tem trilhado – o cronista, como tal, está inserido em seu tempo e dialoga com ele criativamente. Assim é que Antonio Prata se mostra preocupado com a customização dos narizes, com as coxas que viraram um receptor tátil de todas as tranqueiras que surgem no nosso telefone, e chega, até mesmo, a prever o extermínio da humanidade por inanição provocada pelo celular. Não o faz, no entanto, subindo em um banquinho e pregando à multidão, pois nada parece mais nocivo à crônica do que isso: é alguém que diverte, e divertindo mesmo é que pode convencer.
Seu humor não deixa de ser, também, um meio de reagir a um mundo e a um país que vão mal. Nessas horas, quando as suas reservas de esperança descem abaixo dos 20%, ele tem sempre um Rubem Braga à mão, mas ultimamente foi granjeado com outro antídoto, na forma de dois filhos. As crônicas mais bonitas do livro (tirando uma belíssima sobre o homem que morreu diante dele) são justamente as que tratam do nascimento e convívio com Olívia e Daniel, filhos que ainda não eram nascidos quando publicou “Meio intelectual, meio de esquerda”, a antologia anterior. Disso resultou que, agora, eles se tornaram personagens de muitas crônicas, que vão desde os constantes choros de madrugada até a pura epifania com as pequenas proezas das crianças. Mesmo com as noites mal dormidas, mesmo que as crianças não o deixem nunca mais ler “Guerra e Paz” com a caneca na mão, ele sabe que seus filhos põem sorrisos no rosto de quem passa, e que com uma gargalhada conseguem reconfortar o seu coração. Essas são crônicas de encantamento com seres que não existiam e agora existem – o grande milagre diante do qual todos nos curvamos.
Por serem líricas, são também estes os momentos em que o Prata mais se aproxima do Braga. O nosso maior cronista dizia que era impossível fazer crônica sem ser pessoal, e Prata o é, inclusive, naquelas situações que normalmente teríamos vergonha de confessar. Como lê muita crônica, ele sabe que o leitor se diverte a valer mesmo quando o cronista passa por uma situação embaraçosa – e não tanto por sadismo, mas por cumplicidade, em um mundo marcado pela pretensão e pelo culto à imagem. Por isso ele confessa brochadas, assume que toca air guitar, anuncia o nascimento de pêlos nas suas orelhas, relata o seu espermograma, admite, um tanto a contragosto, que faz vozinha melosa quando fala com sua mulher, diz que voltou a usar tênis esportivos, ameaça voltar a usar moleton e ainda revela que os amigos acham que ele tinge o cabelo de acaju. Ele não é o cara que pergunta se é “pavê ou pacomê”, mas é aquele que dá risada e responde que é “pacomê”.
A isso se somem a bela conversa com um motorista de táxi, a história dos sapatos do tio Estêvão, o deslumbramento com uma jarra de suco comprada pela mulher, além do obrigatório tributo a algum passarinho, que todo cronista deve prestar, e tem-se este livro na conta de um dos grandes lançamentos do gênero no ano. E, se serve de consolo ao autor, é provável que mesmo o velho Braga aprovasse a sua leitura.
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