Marc 06/10/2022
É sabido que Conrad desejava refletir sobre o fim da juventude, como se passa à maturidade e como certos eventos podem ser vistos de maneiras diferentes, de acordo com o momento do qual olhamos. Mas o que significa exatamente essa passagem?
Desde o momento que o narrador se manifesta, entendemos que ele está já em outro ponto de sua vida, que ele já viveu o suficiente para saber que, quando jovem, pensava compreender por completo, mas que os acontecimentos o fizeram repensar. O Jovem não é só empolgado com as possibilidades, geralmente tolo sobre as dificuldades inerentes à vida, mas pensa, também, que será capaz de ter uma visão cristalina sobre todas as coisas o jovem capitão não suspeita que juntamente com o cargo que acabou de conquistar vem enormes responsabilidades e uma incontornável de incertezas.
Pois é isso a tal linha de sombra, a vida mesma, que não suporta ser reduzida e esquematizado por esquemas racionais, o de se julga ter previsto tudo. No prefácio, onde Conrad diz que o mundo é repleto de mistério e terror, sem precisar mencionar uma outra dimensão da existência, já ficamos sabendo qual direção quer tomar: quanto mais preparados (experientes) para os desafios da vida, mais sabemos que não podemos controlar nenhum de seus aspectos, que as previsões não se confirmam, que praticamente tudo foge à nossa compreensão.
O mistério faz parte da existência. Jamais poderemos conhecer tudo, dar conta de tudo. Mais que isso: a realidade jamais poderá ser contida em qualquer sistema mental, por mais elaborado que seja. Assim, a cada passo de nossa trajetória, por mais que seja difícil admitir (nosso orgulho nos orienta na direção contrária) não temos certeza do que está acontecendo e somos passageiros à deriva das circunstâncias. Claro que existe o talento, as capacidades aprendidas e desenvolvidas, mas m também há uma enorme sombra, um imenso e insondável território que atua ao mesmo tempo e do qual não podemos escapar.
O jovem prnsa que aqueles que alcançaram posições de destaque o fizeram por talento, força de vontade, perspicácia, etc, mas a verdade é que embora isso tudo seja nece, ninguém que seja honesto será capaz de negar que não sabia de uma porção de coisas a cada passo da caminhada e que, mesmo depois de anos, o passado continua com um manto de escuridão sobre si. Reconhecer essa indeterminação na vida, esse mistério obscuro que nossa consciência e conhecimento não são capazes de esclarecer é o passo decisivo no alcance da maturidade.
No entanto, as coisas não terminam aqui e o livro permite uma reflexão ainda mais complexa. Se o mistério faz parte da vida e só podemos aceitá-lo, isso significa que ser fiel à realidade é uma tarefa que exige não apenas humildade mas, sobretudo, a capacidade de não se deixar levar por esses sistemas e esquemas mentais, que juram retomar o controle sobre o caos e redirecionar nossa vida. Quero dizer, ser fiel à realidade, ter a realidade e a verdade como parâmetros em cada momento exige que renunciemos a nossa vaidade de tudo explicar, de controlar todas as coisas.
Como se andassemos por uma tênue linha iluminada e toda a escuridão da indeterminação nos rodeasse, por diversas vezes conseguindo encobrir os trechos iluminados. Eis uma imagem mais exata sobre a vida e que nossa vaidade não nos permite admitir. Por isso, ser verdadeiro é dizer que não conseguimos esclarecer quase nada, que nosso saber sequer arranhou a superfície de tudo que existe e que vai continuar misterioso.
Conhecer a si mesmo, a inscrição no pórtico do oráculo de Delfos que orientou a filosofia de Sócrates. Por que ela deve ser evocada aqui? Por um lado, parece óbvio: aquele que aprende a se observar, consegue evitar ser dominado pela emoção e sabe do que é capaz. No caso do narrador, esse conhecimento seria capital, evitando que ele cometesse erros ao julgar suas capacidades. Mas há outro ponto, muito mais importante e abrangente, que é sobre aprendermos a olhar para nós e nos localizar no mundo, saber as razões pelas quais pensamos e sentimos certas coisas, como o ambiente e nossas atividades influenciam nossa visão de mundo e, por fim, o que há de universal em nós, que não apenas deve ser explicitado, mas que serve como um guia para se buscar a verdade. Esse aprendizado será incontornável para aqueles que queiram obedecer à realidade e à verdade, que queiram superar a parcialidade de suas sensações e juízos, ou seja, que queiram desenvolver um Eu, uma personalidade e que não desejam ser joguetes nas mão de qualquer espertalhão que promete cumprir nossos desejos e entregar um mundo de delícias.
A maturidade, portanto, significa bem mais do que envelhecer e olhar para trás com condescendência para a pessoa que fomos. Ela significaa capacidade de compreender a si mesmo, ao mundo, seu lugar nele e que muito do que vemos será indecifrável por toda nossa vida.
Insisto nesse ponto, aparentemente sem ligação com o livro, mas ela existe: Conrad escreveu um livro baseado em suas próprias experiências. Ele fez todo o trajeto que descrevi acima, pois viveu, aprendeu, foi capaz de descobrir em si o que havia de universal e verdadeiro não apenas no acontecimento em si, mas também em seus sentimentos análises, pensamentos e, no fim, conseguir expressar tudo isso no livro. É a trajetória de uma personalidade plena que conseguiu, inclusive, se localizar no mundo a partir da que engloba todas as anteriores sua vida.
Fica claro, espero, que a visão de uma existência baseada na previsibilidade da vida, na racionalidade como um esquema mental é não apenas limitada como falsa. A cada previsão, sabemos, o irracional tende a se manifestar e desfazer nossos planos. Mas o narrador não sabe disso no momento da ação, ele pensa que tem controle sobre a vida, pensa que tudo é cristalino e se expõe a seu olhar e cálculos. Por isso, descontado o aspecto real da experiência, o navio acaba servindo como uma metáfora excelente: enquanto a falta do vento o torna praticamente inútil, imóvel, em seus porões há doença, fraqueza, um mal que se manifesta com força e que não foi previsto, quase impossível de combater.
Se o jovem capitão não sabe como lidar com os desafios, o escritor, tendo já percorrido todo o trajeto, consegue extrair o que é válido para qualquer pessoa nessa história: a vida não se permite ser reduzida a um conjunto de variáveis previsíveis e sempre terá uma dimensão caótica, obscura e inexplicável. Cabe a nós nos prepararmos naquilo que temos um pouco de controle, ou seja, nós mesmos.