spoiler visualizarSarah 14/12/2021
Um palimpsesto de machismo
“Como se estivéssemos em palimpsesto de putas”, foi a última obra de Elvira Vigna, autora carioca que, com sua escrita original e audaciosa, se tornou um marco para a literatura contemporânea brasileira. O livro vencedor do prêmio APCA de Literatura, apresenta uma trama repleta de reflexões a partir do diálogo entre João, um executivo infiel, e a narradora, uma designer e arquiteta com uma imaginação fértil.
A priori, o título por si só traz uma perspectiva sobre o rumo que a enredo irá seguir: “palimpsesto designa um pergaminho cujo texto foi eliminado para permitir a reutilização”. A narradora intervém nas histórias de João, completando algumas de suas lacunas e reescrevendo, com seu olhar e sua imaginação fértil, tudo o que não lhe foi dito, abordando temas como patriarcado, infidelidade, insinuações, relações humanas, dentre outras situações do cotidiano.
Em uma primeira leitura, o enredo parece se desenrolar através de uma simples conversa entre duas pessoas, a narradora e João, mas cada vez que a leitura é aprofundada, percebe-se que o que não está escrito, o que está nas entrelinhas, intrínseco ao monólogo de João, é também muito importante. A partir do ponto de vista do narrador, falta informações sobre João e seus pensamentos, os quais são inacessíveis, pois “a consequência natural desse espectro narrativo é que a testemunha não tem um acesso senão ordinário aos estados mentais dos outros” (FRIEDMAN, 2002, p. 176), portanto o que o leito tem acesso é as insinuações que a narradora faz sobre o homem e suas traições: “Seria rápida de qualquer maneira. João tem problemas em fazer com que dure. Não que me tenha dito. Eu é que acho (p. 11)”. Ao declarar seu achismo, a narradora delimita suas informações.
Ainda, a relação entre a narradora e João disfarçadamente explora a relação homem-mulher na sociedade patriarcal, uma vez que enquanto João produz um monólogo sobre suas experiências com prostitutas, a narradora, sem identidade, ouve passivamente e em poucos momentos fala, em voz alta, seus pensamentos sobre as histórias. Como a narradora expressa: “Nas nossas conversas ou no que chamo, na falta de melhor palavra, sou um par de orelhas. Não existo, de fato” (p. 37).
Outro ponto que expõe a dominância patriarcal é o casamento de Lola e João, porque nessa relação não há só uma desumanização da mulher, como a objetificação, a sexualização com Lola, a qual é descrita como “Loura, alta e magra” (p. 152), tal como o padrão de beleza estabelecido pela sociedade, uma coincidência um tanto quanto conveniente. Em diversas passagens do livro João mostra-se desinteressado em ouvir Lola, em estar com a esposa ou com a família, sendo mais feliz no ato sexual. Com a Lola, a situação é mais grave, pois [*****]íca, melhor amigo de João, dormiu com ela e depois nem ao menos a reconhece, situação que transborda absurdez, deixando o leito se perguntar “Como isso é possível”, mas é possível e é real quando você é homem. E quando você é mulher, esse cenário pode ser, ainda, bem comum.
Ainda sobre João, quando ele conta suas histórias percebe-se um vazio interno no personagem que busca sentido para a vida pulando de cama em cama. “Diz que não sabe o motivo de ir, Augusta abaixo, em busca de garotas de programa...” (p. 102), de fato é uma afirmação, até onde o leitor sabe, feita por João sobre sua estadia em São Paulo. O protagonista não está muito preocupado em prestar atenção nas mulheres ao seu redor, mas quando trata-se dos homens, principalmente seus colegas de trabalho, João se importa e muito. É o que a narradora trata quando fala do “poder”, sobre a “competição de paus” entre João e seus colegas de trabalho quando vão ao prostibulo juntos. O tema que a narradora aborda pode parecer hipotético, porém é bastante verossímil se pensarmos que no século 21, ainda há um estado patriarcal impedindo que mulheres sejam donas do seu corpo.
Acerca do enredo, assim como em um palimpsesto, a história vai sendo reescrita por cima das outras, com as lacunas de João sendo preenchidas pelas hipóteses da narradora e também do leitor. Os espaços em branco que ele deixa em suas histórias são importantes, porque pode-se interpretar que, como é só uma puta, João não deve atenção a ela, basta pagar pelo o que tem entre as pernas, só o que pode ser comprado merece sua atenção, afinal é esse o papel da mulher. Apesar de ocorrer em menor quantidade, as insinuações também partem de João, pois o mesmo crê que a narradora é uma mulher lésbica e vivida, apenas por saber que ela divide o apartamento com Mariana, uma prostituta.
A obra parece apresentar todos os espaços, vazios, silêncios e indagações de proposito, deixando nas mãos do leitor o rumo para determinados diálogos ou situações. Com frases curtas e diretas, a autora instiga a leitura, não poupando o leitor de nenhum choque e evidenciando o comportamento masculino.
Um dos cenários não esclarecidos, é a amizade (ou mais que isso?) entre João e Lurien – eles são apenas melhores amigos ou há mais intimidade do que é exposto? Não tem como saber. Inclusive, sobre essa relação é possível se perguntar o motivo de ter acontecido, imaginasse que foi porque João via Lurien como um homem (apesar dele não se importar como o viam). De qualquer maneira, toda hipótese sobre a relação entre os dois, ou entre João e Lola, ou João e [*****]íca, qualquer relação humana inserida no enredo, não é capaz de ser confirmada e, particularmente, vejo isso como uma forma especial de espelhar a sociedade.
O livro de Elvira é como um soco no estômago. Sua escrita objetiva não deixa espaço para o leitor respirar, pois a cada história de João aumenta o sentimento de repulsa por esse personagem, ele é construído para ser odiado. Ao passo as mulheres da história são bem construídas, sobre a Lola, a sua reviravolta é, particularmente, espetacular, mas ao mesmo tempo um tanto quanto triste, pois o modo como ela foi apenas “mais uma” para [*****]íca é de partir o coração. Quanto a Narradora, ela é sarcástica e responde João à altura, ao menos em seus pensamentos, faz o que os homens fazem com as mulheres: generaliza. Afinal, por que não?
O enredo do livro é marcante, faz você pensar durante semanas, abre os olhos para a sociedade “moderna” e te faz questionar quantos “João” estão por aí. A escrita, com diversos temas nas entrelinhas, aquilo que não foi dito, as pausas grandes e o enredo não linear é diferente, mas se explica através do título do livro. No mais, é um livro que vale a pena ser relido. O falecimento da Elvira deixa um vazio na literatura contemporânea brasileira.