Michele Soares 20/01/2021
O Solar nas sombras: Arthur Conan Doyle a reinvenção de si mesmo
"Permite-me fazer uma pergunta?" ? interveio Holmes ? Que palavras eram essas que ele deixava cair pelo caminho?"
" ? O Vale do Medo ? a dama respondeu ? Quando eu lhe fazia certas perguntas, John usava essa expressão. 'Eu estive no Vale do Medo e ainda não saí de lá', costumava dizer. Certa vez, vendo que ele andava muito sério e calado, perguntei: 'Ainda não saímos do Vale do Medo?'. E ele respondeu 'Às vezes, acho que nunca vamos sair'".
Ao longo deste último mês seguindo na trilha da obra sherlockiana, muitas foram as vezes em que se usou as expressões "único", ou então "nunca vi nada assim antes" ou "excepcional e diferente de tudo o que já apareceu na minha carreira", palavras costumeiras na boca de Sherlock Holmes, que, imagino eu, seria o mais apropriado para avaliar as peculiaridades da própria carreira. Contudo, neste último entre os romances canônicos de Conan Doyle, adianto que "O Vale do Medo" é, para o bem ou para o mal, uma jóia entre os casos de Sherlock. Explico o porquê, mesmo que não me perguntem, e para isso gostaria de fazer alguns comentários de pontos que me chamaram a atenção, os quais, por sua vez, já se configuram como "porquês".
Comecemos pela estrutura narrativa, um dos meus pontos de observação prediletos dentro de qualquer história. Ao iniciar minha resenha comentei sobre a forma como esta narrativa é singular. O curioso, entretanto, é que esta singularidade não parte de nenhum tipo de inventividade súbita, mas, ao contrário, de elementos que já conhecemos muito bem de outras histórias protagonizadas pelo detetive e por seu amigo.
Conforme avançamos ao longo da leitura, somos remetidos a outros casos de Sherlock que apresentam situações semelhantes, para não dizer iguais. Certamente, a sombra da "A Aventura do Construtor de Norwood" perpassa toda a primeira metade do livro e quando chegamos ao capítulo "Solução" vemos que se trata exatamente do que esperávamos, caso tivéssemos em mente este conto. Como eu mesma não tinha, houve uma surpresa, é claro, como na resolução dos maiores casos de Sherlock. Porém, logo em seguida essa surpresa adquiriu um sabor estranho, adensado quando entramos na segunda metade do livro. O esquema narrativo é exatamente o mesmo que encontramos no primeiro romance de Sherlock, "Um estudo em vermelho". Conta-se o caso / Soluciona-se / Retrocedemos anos antes para entender os motivos do crime / Retornamos à Baker Street 221b. Uma série de elementos também se espelham como a sombra de uma possível vingança, tal como uma história que começa, como sempre, em solo estaduniense, até desembocar na terra da Rainha.
Ainda que curiosa, foi inevitável não me sentir insultada em algum nível. A minha edição de "O Vale do Medo" apresenta uma introdução excelente escrita por José Francisco Botelho e nela nos é dito o quanto Sir Arthur Conan Doyle, com o passar dos anos, já havia se cansado de Sherlock. A criatura dominara e ultrapassara o mestre, mas este Frankenstein ainda punha dinheiro sobre a mesa de seu Victor, que se subjugava, então resignado, às exigências dos primeiros fandoms e ao luxo todo que uma vida escrevinhando sobre um detetive arguto e seu amigo podiam lhe oferecer.
A partir deste fato, minha primeira impressão avaliando os ecos e as repetições de histórias anteriores dentro da "nova" foi precisamente a seguinte: "Conan Doyle está cansado. Ele cansou de inventar, está escrevendo de puro mau gosto, reciclando histórias, que, no passado, foram seus grandes sucessos". Enquanto rascunhava notas para minha resenha final, pensei em chamar este artigo de "O Solar nas sombras: Conan Doyle e o plágio de si mesmo". Não que isso seja uma coisa negativa, é claro. Há diversos escritores que cultivaram o autoplágio, à maneira de, por exemplo, Clarice Lispector. Eu tinha tudo pronto, seria uma resenha cirúrugica, ainda que condenada a ser lida pelos olhos de ninguém ? um ou dois com muito tempo livre, talvez.
Entretanto, como podem notar, entretanto, a minha resenha se intitula: "O Solar nas Sombras: Conan Doyle e a reinvenção de si mesmo". O que aconteceu? A alguns parágrafos atrás comentei que a história não é inventiva, mas isso não anula a sua capacidade de se reinventar, de parecer fresca e agradável aos olhos que já leram boa parte dos romances e contos sherlockianos. Sim, caro leitor, esta obra tem a proeza admirável de retirar doce perfurme de uma rosa murcha. Doyle não reinventa a roda, como não seria sábio esperar de escritor algum, mas, usa dos pregos e do material que já dispõe para arquitetar a sua jóia narrativa.
A primeira parte, como disse, ecoa o conto d'O Construtor, mas de forma ampliada em magnitude, relevância e verve dramática do mistério. Todas as setas, todas as pistas, apontam para caminhos contrários e excludentes. Não se confia em ninguém, se duvida de tudo e de todos, de uns mais que outros, como sempre. O próprio Sherlock, como esperado, incorre em erro. Por que não nós, então? A organização da primeira parte é realmente bem arquitetada e a sua resolução, apesar de, exatamente aí, ser extraída do conto que a precedeu, projeta alguma expectativa e alguma angústia, na qual mergulhamos, de cabeça, ao longo da segunda parte. A trama dos Rufiões do Vale de Vermissa, com toques de seita e de organização secreta (Olá, "Um estudo em Vermelho"), é inspirada na organização dos Molly Maguires, que, no entanto, me lembrou muito uma excelente série chamada "Peaky Blinders". Diversas cenas desta parte me remeteram à série (que fica como recomendação). O local sujo, mórbido e sob o jugo do Medo que paira sobre todos aqueles que não fazem parte da Ordem dos Homens Livres. Reuniões, códigos, trabalhos, irmandade, segredos, extorsão e richas com a polícia permeiam cada capítulo. Há uma mocinha alemã (Ettie, facilmente substituível mentamente pela figura da irlandesa Grace), uma sucessão de crimes, uma ascensão perigosa. Mesmo conhecendo as consequências, é difícil saber para onde estamos caminhando, para onde este relato impessoal (realmente aos modos d'Um Estudo) nos carrega. Quem assistiu "Peaky Blinders", sabe onde tudo isso termina na quinta temporada: Traição. Mas Eclesiastes estava mesmo com a razão e não há nada de novo sob o sol?
O desfecho é chocante, absurdamente chocante. A sensação de leitura foi a de levar um choque elétrico de alta voltagem. "Não! Ele não fez isso!". As conexões com o presente da solução do mistério, com o passado e com o futuro da Baker Street são extremamente elegantes. Mesmo no "Epílogo", ali está o mistério desnudo ainda a se desenrolar diante de nós, como uma torneira pingando e pingando sangue escarlate vivo. Com o coração esmurrando o peito, com as narinas desesperadas procurando por uma solução, por uma ajuda, não pare, leitor, não pare de correr até chegar até a última linha do último parágrafo. Antes do que uma admoestação, esse é apenas um conselho amigo.
À este ponto da resenha, que já se alongou o suficiente, cabe fazer uma última menção a figura do professor (James?) Moriarty e como ele também se liga, de forma elegante, a eventos tão díspares. É como eu disse, não há como parar até a última linha ser lida. Não há como cantar certezas ou vitórias. O último parágrafo quase convida, explicitamente, à uma releitura do conto "O problema final", tamanha a densidade da sombra que enegrece um céu que se prometia azul límpido. Peça-me o que quiser, Sherlock, peça o que quiser às paredes que quiser, aos amigos que fizer e a quem te ouvir. Mas não peça por nem um segundo a mais, não peça tempo, pois o seu preço é caro e o intratável da sua natureza é justamente isto no qual, seja como um trem descarrilado, seja como uma criança dando seus primeiros passos, ele sempre vem e sempre chega exatamente onde queria chegar.