Brunífero 24/02/2022
No distante oceano vizinho, A Ilha
Nas minhas andanças pelo mundo da leitura, já me acostumei a me deparar com leituras marcantes de outrora que não são tão lembradas nos dias atuais, quando não francamente esquecidas, umas de forma justificada e outras não. A Ilha, livro de estreia do jornalista Fernando Morais, fica no meio dessa dicotomia.
Estreante, Morais visitou Cuba entre novembro de 1974 e fevereiro de 1975, numa época em que Cuba era um assunto proibidíssimo na Ditadura Civil-Militar. Desde a Revolução de 1959, somente um jornalista, da Revista Realidade, tinha visitado o país em meados dos anos 60. O governo brasileiro tinha cortado laços com Cuba de forma totalmente unilateral, o que tornava o passaporte brasileiro inválido para Cuba, e sabendo disso, Morais insistentemente tentava achar um visto para a viagem à Cuba. A chance veio em 1974, quando ocorreu a Revolução dos Cravos, que derrubou a ditadura salazarista em Portugal. E o que isso tem a ver com esse livro? Bom, a embaixada de Cuba em Lisboa deu um visto para que Morais visitasse Havana, e a partir dessas observações surgiu o livro-reportagem A Ilha. Depois de voltar tomando uma complicadíssima ponte aérea que envolvia São Miguel dos Açores, Tchechoslováquia (RIP), Espanha e finalmente o Brasil, encontrar uma editora que aceitasse publicar o manuscrito foi outra complicação. Somente uma aceitou publicar: a nanica Alfa-Ômega, editora marxista-leninista com ligações com o PCdoB. Contra todas as expectativas, no entanto, o livro foi um estouro de público, tornando a Alfa-Ômega uma das maiores editoras militantes do país durante alguns anos (chegaram a fazer até uma edição de bolso!) e levando até a uma enxurrada de publicações com viés similar, hoje ainda mais esquecidas do que A Ilha. Dentre os milhares de leitores da época, estava meu pai, apenas um curioso que não entendia do assunto, mas que se encantava com o ar de ineditismo que Morais proporcionava. Chegou a falar do livro algumas vezes, de forma distante mas terna. E em 2021, eu finalmente consegui uma edição em um sebo online pela bagatela de 5 reais, junto de Corações Sujos e Cem Quilos de Ouro. 45 anos depois de seu lançamento.
Mas afinal, o que sustentou A Ilha? Foi só o susto da novidade? Este foi um grande fator do sucesso, mas ele também se deve a uma boa escrita, bem consistente para um autor iniciante.
Para começar, ao contrário do que alguns podem dizer, não acredito que o livro ser datado é um defeito. Ele não foi feito para durar, muito menos para ser uma análise profunda do funcionamento do socialismo cubano. Ele é, estritamente, uma reportagem a respeito do estado de coisas em Havana (e um pouco do país) em 1974-5. O livro é dividido em 11 capítulos, bem curtos e delimitados; cada um fala sobre um tema bem específico, seja o cotidiano, a educação, a imprensa, a economia, etc. Ainda há 4 textos de apêndice, e são esses o que mais se aproximam de contar a história de Cuba, ainda que de maneira limitada, no formato de entrevistas (uma dessas entrevistas, com Fidel Castro, foi publicada na VEJA ainda em 76). Definitivamente não posso falar como um leitor da época, mas mesmo hoje dá pra sentir o ar de novidade que o faro do autor pôde trazer. Quando não é pelas diferenças com o Brasil, é (e isso é uma novidade que uma leitura décadas a frente pode trazer) pelo passado escrito em tinta. Seja por microhistórias locais, como a de Teófilo Stevenson (que nome!) ou o tratamento médico relâmpago, sempre parece existir fator de espanto pelo menos uma vez em cada capítulo. E ler A Ilha com o faro do historiador pode ser uma das melhores formas de aproveitar o livro hoje. Infelizmente, pode ser também uma das únicas.
Por bom que o livro seja, é difícil recomendá-lo de forma despreocupada para um leitor qualquer. É preciso ter o contexto da época e não elevar as expectativas. E isso parece um mal que o livro não consegue escapar, não só pela natureza instantânea da reportagem como até mesmo pelo tratamento editorial. A última edição do livro, de 2001, contém um elucidativo prefácio de Fernando, mais longo que qualquer capítulo, que narra uma nova viagem a Cuba, 25 anos depois da anterior. Mas factualmente, o tempo não deixou pedra sobre pedra dessas "novas" impressões - o sistema de duas moedas, tão alardeado na época, deixou de existir. Então o que mais sobra para A Ilha?
Por mais que seja necessário entender que nada surge numa redoma, sempre é necessário construir as próprias interpretações do que já passou. Isso pode ser exemplificado por esse mesmo prefácio que já mencionei. Em 2001, Cuba que estava devastada pela crise (chamada pelo eufemismo de "Período Especial") e a União Soviética não existia mais. Era o auge do "Fim da História", que não significava apenas o triunfo do capitalismo na Guerra Fria; era a descrença em outra alternativa viável. Nesse sentido, Cuba deixa de se atual e se torna um fóssil, por bons e maus motivos. É mentira que o autor idealiza Cuba, pois mesmo no texto base, nem tudo anda às mil maravilhas - me lembro, por exemplo, da entrevista com o taxista no capítulo "A Revolução Onipresente". O criticismo é ainda mais acentuado no prefácio de 2001: há desilusão, falta de expectativa e outros sentimentos bem deprimentes. De alguma forma, o país ainda resguarda o potencial que ele pode ter, mas essa expectativa é barrada pelo trauma das antigas experiências socialistas, como um preço a se pagar ou algo intransponível na evolução. Sinceramente, viver em tempos tão anti-futuro me desanima bastante, mas não deixa de ser interessante um dos últimos trechos desse prefácio:
"Dentro do táxi, a caminho do aeroporto, uma placa gigantesca me chama a atenção. Colocada ali quando o papa João Paulo II, em 1998, ela não foi repintada, mas ainda é possível ler o que está escrito: 'Hoje à noite, 500 milhões de crianças vão dormir na rua. Nenhuma delas é cubana'. [...] Quantos países no mundo podem colocar uma placa como essas na rua? Conheço os Estados Unidos, vivi na França e acabo de voltar do Japão. Nenhum desses 3 países tem condições, hoje, de mandar instalar uma placa daquelas em Washington, Paris ou Tóquio e substituir a última palavra por 'americana', 'francesa' ou 'japonesa'. O avião já está rolando pela pista e eu ainda não consegui responder à pergunta: para ostentar uma conquista de tamanha dimensão, como a contida naquela placa, é obrigatoriamente necessário (sic) o partido único, a imprensa oficial? E terá que ser assim, eternamente, ou isso é decorrência, como insistem muitos cubanos, da guerra movida contra Cuba pelos Estados Unidos?"
Ele mesmo responde no texto, mas vou deixar que tire as próprias conclusões.
*A edição que li é a 30ª, da Companhia das Letras. Contém o texto integral da obra. Além do prefácio de 2001, ela preserva o prefácio original de 1976, por Antônio Callado. Além disso, foi acrescentado um caderno de fotos (graças aos céus que não foi em papel couchê!) feitas também em 2001 por Rita Morais, filha de Fernando. Para uma fotógrafa amadora, as fotos ficaram muito bonitas e são um belo toque.
E só um detalhezinho fofo: na minha cópia, a pessoa que tinha o livro antes de mim marcou com marca-texto as palavras mais difíceis e anotou à lápis os significados no verso das páginas. Um pequeno favor daqueles que garantem uma passagem para O Bom Lugar (adoro essa série)