spoiler visualizarEuriano 09/12/2021
O Deus Pródigo
Não vou empregar o título pelo qual a história é geralmente conhecida: Parábola do Filho Pródigo. Não é correto destacar somente um dos filhos como foco da história. O próprio Jesus não se refere a ela como Parábola do Filho Pródigo, mas começa o relato dizendo: ?Um homem tinha dois filhos?. A narrativa diz respeito tanto ao irmão mais velho quanto ao mais novo, tanto ao pai quanto aos filhos. E o que Jesus afirma sobre o irmão mais velho constitui uma das mais importantes lições que aprendemos na Bíblia.
pródigo. (adj.)
1. Esbanjador imponderado.
2. Que gasta até o fim.
Ver Lucas 15
1) AS PESSOAS EM VOLTA DE JESUS
É muito importante observar o contexto histórico em que o autor situa o ensino de Jesus. Nos dois primeiros versículos do capítulo, Lucas registra a presença de dois grupos de pessoas que foram ouvir Jesus. Primeiro, os ?coletores de impostos e os pecadores?. Essas pessoas são representadas pelo irmão mais novo. Elas não obedeciam às leis morais da Bíblia nem às regras de pureza cerimonial observadas pelos judeus religiosos. Elas viviam uma ?vida dissoluta?. À semelhança do irmão mais novo, elas ?saíram de casa?, abandonando a moral tradicional das famílias às quais pertenciam e dos bons costumes da sociedade. O segundo grupo de ouvintes era formado pelos ?fariseus e mestres da lei?, aqui representados pelo irmão mais velho. Eles se apegavam à moral tradicional aprendida desde a infância. Estudavam as Escrituras e a elas obedeciam. Eram adoradores fiéis e estavam sempre em oração.
Portanto, a quem se dirige o ensino de Jesus nesta parábola? Ao segundo grupo, formado por escribas e fariseus. Jesus começa a lhes contar a história motivado pela postura deles. A parábola dos dois filhos estende o olhar à alma do irmão mais velho e culmina em um forte apelo para que ele mude a postura de seu coração.
A história revela o egoísmo destruidor do irmão mais novo, mas também condena com todas as letras a vida moralista do irmão mais velho. Jesus está dizendo que ambos religiosos e não religiosos estão espiritualmente perdidos, andando por caminhos na vida que levam a becos sem saída, e que todos os pensamentos da raça humana sobre como se relacionar com Deus estão errados.
Por que as pessoas gostam de Jesus, mas não da igreja?
Hoje, cada vez mais as pessoas se consideram não religiosas ou até antirreligiosas. Elas acham que as questões morais são profundamente complexas e desconfiam de indivíduos ou instituições que alegam ter autoridade moral sobre a vida de terceiros. Apesar (ou talvez por causa) do surgimento desse espírito secular, os movimentos religiosos ortodoxos e conservadores têm crescido de forma considerável. Alarmados por aquilo que consideram ser um ataque do relativismo moral, muitos têm se arregimentado para ?resgatar a cultura? e classificar como negativas as posturas dos ?irmãos mais novos?, à semelhança do que faziam os fariseus.
Então, de que lado está Jesus? Em O senhor dos anéis, quando os hobbits perguntam ao ancião Barbárvore de que lado ele está, ele responde: ?Não estou totalmente do lado de ninguém, pois ninguém está totalmente do meu lado. [?] [Mas] há algumas coisas, é claro, ao lado das quais eu certamente não estou?.
Hoje é difícil entender isso, mas em seus primeiros dias o cristianismo não era visto como religião. Ele era a negação da religião. Pense nos vizinhos dos primeiros cristãos perguntando a eles sobre sua fé. Eles indagavam:
? Onde fica o templo de vocês?
Os cristãos respondiam que não tinham templo.
? Mas, como isso é possível? Onde os sacerdotes de vocês trabalham?
Os cristãos respondiam que não havia sacerdotes. Os vizinhos, já meio incomodados, diriam:
? Mas? mas, onde são feitos os sacrifícios em louvor aos deuses de vocês?
Ninguém nunca tinha ouvido nada parecido com isso. Por isso os romanos se referiam aos cristãos como ?ateus?, pois o que eles diziam sobre a realidade espiritual era algo singular e não podia ser classificado junto com as outras religiões do mundo. A parábola explica por que eles estavam totalmente certos ao se referir aos cristãos como ateus.
A ideia central é que, de modo geral, as pessoas que podiam ser consideradas religiosas praticantes escandalizavam-se com Jesus, ao passo que as alienadas das práticas morais e religiosas ficavam fascinadas e se sentiam atraídas por ele. Essa realidade pode ser contemplada nos relatos da vida de Jesus apresentados pelo Novo Testamento. Em todos os casos em que ele se encontra com uma pessoa religiosa e uma vítima de discriminação por causa do sexo (como em Lucas 7), ou com alguém religioso e alguém discriminado por motivos raciais (como em João 3 e 4), ou com uma pessoa religiosa e outra discriminada por razões políticas (como em Lucas 19), quem se liga a Jesus é a pessoa discriminada e não aquela simbolizada pelo irmão mais velho. Jesus diz aos respeitáveis líderes religiosos: ?? os coletores de impostos e as prostitutas entrarão no reino antes de vocês? (Mt 21.31).
Se a pregação de nossos pastores e as ações dos membros de nossas igrejas não exercem sobre as pessoas o mesmo efeito que Jesus exercia, então a mensagem que estamos proclamando não é a mesma que ele proclamava. Se nossas igrejas não atraem irmãos mais novos, elas provavelmente estão cheias de irmãos mais velhos ? bem mais do que gostaríamos de admitir.
2) OS DOIS FILHOS PERDIDOS
Naquele tempo, quando o pai morria, o filho mais velho herdava o dobro do quinhão dos ou tros filhos. Se o pai tivesse dois herdeiros, o mais velho ficava com dois terços da herança, ao passo que o mais novo recebia um terço.
No entanto, essa partilha dos bens acontecia somente quando o pai morria. Na parábola, o filho mais novo pede que sua parte da herança lhe seja dada agora, e essa atitude era um sinal de profundo desrespeito. Fazer esse pedido enquanto o pai ainda estava vivo era o mesmo que desejar sua morte. No fundo, o que o filho mais novo estava dizendo era que desejava os bens do pai, mas não o pai.
No Oriente Médio, a reação esperada de um pai tradicional seria expulsar o filho da família sem direito a nada, a não ser uma boa surra. Aquele pai não faz nada disso. Ele simplesmente ?dividiu seus bens entre eles?.
A maioria dos ouvintes de Jesus nunca tinha visto um patriarca do Oriente Médio reagir como aquele pai. Com muita paciência, o pai suporta uma grande desonra e a dor do amor rejeitado. Quando nosso amor é rejeitado, costumamos ficar com raiva, retaliar e fazer todo o possível para diminuir nossa afeição pela pessoa que nos rejeitou, na tentativa de diminuir nosso sofrimento. Mas aquele pai mantém a afeição pelo filho e suporta a agonia.
O plano do irmão mais novo
Os rabinos ensinavam que se o indivíduo violasse as regras da comunidade, não seria suficiente pedir desculpas ? ele teria de fazer algum tipo de restituição. O filho planeja dizer algo assim: ?Pai, eu sei que não tenho o direito de voltar a fazer parte da família. Mas se o senhor permitir que eu seja orientado por um de seus empregados, aprenda uma profissão e receba um salário, pelo menos poderei começar a pagar minha dívida?. Esse era seu plano.
Chegamos à última e comovente cena do primeiro ato. O jovem chega a certa distância da casa de onde já podia ser avistado. O pai o vê e corre ? corre até ele! De modo geral, os patriarcas do Oriente Médio, por serem figuras notáveis, não corriam. As crianças podiam correr; as mulheres podiam correr, os jovens podiam correr. Mas não o pater familias, o digníssimo pilar da comunidade, o grande proprietário das terras. Ele não levantaria sua vestimenta e mostraria as pernas como se fosse um garoto. Mas é isso que o pai faz. Ele corre em direção ao filho e, sem esconder nenhuma emoção, atira-se sobre ele e o beija.
É quase certo que essa postura pegou o irmão mais novo de surpresa. Confuso, ele tenta apresentar seu plano de restituição. O pai o interrompe, não apenas ignorando o discurso ensaiado, mas contrariando-o diretamente. ?Depressa!?, ele diz aos servos. ?Tragam-lhe a melhor roupa e vistam nele!? Como é que é?
A melhor roupa na casa era a roupa do próprio pai, e esse era um sinal inconfundível de que ele havia sido reintegrado à família. O que o pai está dizendo é isto: ?Não vou esperar você liquidar sua dívida; não vou esperar que cumpra o protocolo de humilhação. Você não vai precisar conquistar o direito de voltar a fazer parte da família; vou simplesmente aceitá-lo de volta.
Na sociedade de então, a maioria das refeições não incluía carne, pois se tratava de um alimento caro. Geralmente a carne era reservada para ocasiões especiais e para festas. Mas não havia carne mais cara que a do novilho da engorda. Um banquete com essa dimensão era algo que acontecia em raras ocasiões, e provavelmente toda a cidade foi convidada. As notícias voam, e logo começou uma grande festa com música e dança, tudo para comemorar a restauração do filho mais novo;
O primeiro ato, portanto, dá prova da graça de Deus oferecida com prodigalidade e sem limites. Jesus mostra o pai precipitando-se em amor sobre o filho antes que ele tivesse oportunidade de purificar sua vida e de dar algum sinal de que seu coração havia mudado, antes mesmo de fazer seu discurso de arrependimento. Não há nada que mereça o favor de Deus, nem mesmo a contrição extrema. O amor e a aceitação do Pai são oferecidos absolutamente de graça.
Comentaristas que, concentrando-se exclusivamente no primeiro ato, concluem que a parábola contradiz doutrinas tradicionais do cristianismo. Eles dizem: ?Olhe, não há sequer menção da expiação pelo pecado. Não há necessidade de um salvador que paga os pecados sobre uma cruz. Deus é um Deus de amor universal que, sem impor condições, aceita a todos, não importa quem sejam nem o que tenham feito?.
Se essa fosse a mensagem da parábola, Jesus encerraria a narrativa neste ponto. Mas ele não para por aqui, pois a mensagem não é essa. O primeiro ato nos mostra a gratuidade da graça de Deus, mas o segundo ato nos revela a grandeza dessa graça e o verdadeiro auge da história.
O irmão mais velho e perdido
Ele fica do lado de fora, demonstrando publicamente que não apoiava os atos do pai. Essa atitude obriga o pai a sair para falar com seu filho mais velho, um gesto humilhante para quem é senhor das terras e anfitrião de um grande banquete.
Ao reintegrar à família o irmão mais novo, ele o transformou novamente em herdeiro com direito a um terço da riqueza da família (agora já bem reduzida). Para o irmão mais velho, isso é inconcebível. Ele dispara a falar. ?Eu me matei de tanto trabalhar e conquistei tudo o que tenho, mas meu irmão não fez nada para conquistar coisa alguma; na verdade, ele merecia ser expulso, mas o senhor o cobre de riquezas! Que justiça é essa??
Assim, a fúria do irmão mais velho o leva a ofender o pai ainda mais. Ele se recusa a dirigir-se ao pai com o respeito que os subordinados tratavam seus superiores naquela cultura, ainda mais em público. Ele não diz ?querido pai?, mas simplesmente ?Olhe!? ? algo equivalente a ?Você! Olhe aqui!?. Em uma cultura onde o respeito e a deferência em relação aos mais velhos era algo de tão grande importância, esse comportamento é ultrajante.
Finalmente chegamos ao desenlace. Como o pai reagirá à franca rebelião do filho mais velho? O que ele fará? Um homem daqueles dias e naquela posição teria deserdado o filho na mesma hora. Em vez disso, ele mais uma vez reage com incrível ternura e convida o filho a entrar e festejar.
Os ouvintes estão curiosos e cheios de expectativa. Será que a família finalmente se unirá em amor? Será que os irmãos vão se reconciliar? Será que o irmão mais velho ficará sensibilizado diante dessa incrível oferta e se reconciliará com o pai?
Exatamente quando começamos a pensar em todas essas coisas, a história chega ao fim! Por que Jesus não terminou a história e não nos disse o que aconteceu?!
3) REDEFININDO O PECADO
Na parábola, o irmão mais velho representa o caminho da conformidade moral. Os fariseus dos dias de Jesus acreditavam que, embora fossem o povo escolhido, só poderiam permanecer sob a bênção de Deus e receber a salvação em definitivo se prestassem rigorosa obediência à Bíblia.
Da perspectiva desse paradigma, é somente pela retidão moral que podemos encontrar a felicidade e a justiça neste mundo. É claro que haverá vezes em que poderemos cair, mas nessas horas seremos julgados segundo o grau e a intensidade de nosso arrependimento.
O irmão mais novo representa o caminho do autoconhecimento. Nas antigas culturas patriarcais havia pessoas que seguiam por esse caminho, mas hoje o número delas é bem maior. Segundo esse paradigma, os indivíduos devem ter liberdade para buscar seus objetivos.
De acordo com esse pensamento, a vida seria bem melhor se as tradições, os preconceitos, a autoridade hierárquica e outras barreiras que impedem a liberdade pessoal fossem reduzidas ou eliminadas.
Temos aqui um retrato dos dois paradigmas. A pessoa que segue pelo caminho da conformidade moral diz: ?Não vou fazer o que quero, mas, sim, o que a tradição e a comunidade querem que eu faça?. A pessoa que segue pelo caminho do autoconhecimento diz: ?Só eu sei o que é certo ou errado para mim. Vou viver do jeito que eu quiser e assim vou me descobrir e encontrar a felicidade?.
A polarização
A sociedade ocidental encontra-se tão dividida entre esses dois extremos, que é difícil conceber alguma outra forma de viver. Se criticarmos uma dessas concepções ou dela nos distanciarmos, todos pensarão que decidimos seguir a outra, pois ambas as visões têm a tendência de dividir o mundo em dois grupos.
Os conformistas morais dizem: ?Os imorais ? pessoas que vivem ?cada uma de seu jeito? ? são o verdadeiro problema do mundo, e os que pautam a vida pela moral são a solução?.
Os defensores do autoconhecimento dizem: ?Os intolerantes ? os que dizem ser ?donos da verdade? ? são o verdadeiro problema do mundo, e os progressistas são a solução?. Ambos os lados dizem: ?Somente do nosso jeito o mundo pode ter solução, e quem não está conosco está contra nós?.
Apesar dessas variações, são essas as duas principais posturas diante da vida. A mensagem da história contada por Jesus é que ambas estão erradas. Sua parábola representa uma alternativa radical.
O irmão mais novo leva uma vida dissoluta e voltada aos prazeres pessoais. Ele está totalmente fora de si. Está alienado do pai, personagem que representa Deus. Qualquer pessoa que vivesse daquele jeito seria rejeitada por Deus, conforme haveriam de concordar todos os ouvintes da parábola.
O irmão mais velho presta obediência meticulosa ao pai e, portanto, por analogia, aos mandamentos de Deus. Exerce total controle sobre si e se revela bastante disciplinado. Vemos então dois filhos: um é considerado ?mau? segundo os padrões tradicionais, e o outro é tido como ?bom?; mas os dois estão alienados do pai. O pai é obrigado a sair e convidá-los a participar da celebração de seu amor. Assim, a parábola não retrata somente um filho perdido, mas dois.
Mas o segundo ato tem um desfecho que não poderíamos imaginar. Ao contar a história, Jesus deixa deliberadamente o irmão mais velho em seu estado de distanciamento. O filho mau entra para o banquete do pai, mas o bom fica do lado de fora. Aquele que buscou a companhia de prostitutas é salvo, mas o homem cheio de retidão moral continua perdido. É possível imaginar os fariseus bufando de raiva no fim da história. Tudo aquilo era exatamente o contrário do que eles sempre tinham ouvido.
Porque o irmão mais velho não entrou?
A barreira entre ele e o pai não havia sido colocada por seus pecados, mas pelo orgulho decorrente de seu comportamento pautado pela moral; o que o impede de participar do banquete do pai não é sua iniquidade, mas sua retidão.
Qual era o grande desejo que o irmão mais velho tinha na vida? Se pensarmos bem, perceberemos que ele queria o mesmo que seu irmão. A exemplo do irmão mais novo, ele também estava magoado com o pai. Ele também queria os bens do pai, mas não o pai. Todavia, embora o irmão mais novo tenha saído de casa, o mais velho ficou e ?nunca havia desobedecido?. Era assim que ele queria obter o controle. Sua exigência tácita é esta: ?Eu nunca desobedeci ao senhor! Por isso o senhor precisa fazer as coisas do jeito que eu quero?.
Você percebe o que Jesus estava ensinando? Nenhum dos filhos amava o pai por aquilo que ele era. Os dois estavam usando o pai para alcançar seus objetivos egoístas, em vez de amá-lo, desfrutar de sua companhia e servi-lo sem interesses. Isso significa que podemos nos rebelar contra Deus e dele nos alienar transgredindo suas leis ou cumprindo-as com todo zelo.
Assim como o irmão mais velho, pessoas religiosas costumam levar uma vida pautada pela moral, mas com isso desejam ter alguma margem de manobra diante de Deus, controlá-lo e colocá-lo numa condição que lhes permita pensar que ele lhes deve algo. Portanto, apesar de toda espiritualidade e rigor ético que demonstram, elas de fato estão se rebelando contra sua autoridade. Se, a exemplo do irmão mais velho, você pensa que Deus precisa abençoá-lo e ajudá-lo porque, afinal de contas, você se esforçou tanto para obedecer e ser uma pessoa do bem, então Jesus até pode ser seu ajudador, seu exemplo e até inspiração, mas ele não é seu Salvador. Você está servindo na condição de seu próprio Salvador.
Se você, à semelhança do irmão mais velho, tenta controlar Deus por meio de sua obediência, então toda a sua vida pautada pela moral não passa de um meio de usar a Deus para levá-lo a lhe dar aquilo que você realmente quer na vida.
Você pode ser seu próprio Senhor e Salvador de duas maneiras. Uma é transgredindo todas as leis morais e definindo por conta própria o caminho a seguir na vida; a outra é cumprindo todas as leis morais e sendo extremamente bom.
Ambos errados, ambos amados
Jesus não divide a humanidade entre os ?bons?, que pautam a vida pela moral, e os ?maus?, que levam uma vida imoral. Ele nos mostra que todos se empenham em seus próprios esquemas de salvação pessoal e usam Deus e as pessoas para obter poder e exercer controle.
Isso significa que a mensagem de Jesus, o ?evangelho?, constitui uma espiritualidade completamente distinta. O evangelho de Jesus não se define por religião ou falta de religião, moralidade ou imoralidade, moralismo ou relativismo, conservadorismo ou liberalismo. Ele também não é um meio-termo entre dois extremos ? é totalmente outra coisa.
Os dois filhos estão errados, os dois filhos são amados, mas a história não termina igual para os dois. Por que Jesus faz a narrativa de tal modo que um deles é salvo, restaurado a um relacionamento correto com o pai, mas o outro não?
O afastamento do filho mais novo é mais do que óbvio. Ele se afasta do pai literalmente, tanto no plano físico quanto moral. O filho mais velho fica, mas a verdade é que ele se encontrava mais distante e alienado do pai do que o irmão, pois estava cego para sua real condição.
O irmão mais velho está mais cego para o que está se passando e, por isso, de uma perspectiva espiritual, a condição de um fariseu como irmão mais velho era mais desesperadora. Se você insinuar a uma pessoa religiosa que o relacionamento que ela mantém com Deus não está certo, ela responderá: ?Como você se atreve a dizer uma coisa dessas? Eu sou um dos primeiros a entrar quando as portas da igreja são abertas?. Mas o que Jesus de fato está dizendo é o seguinte: ?Isso não quer dizer nada?.
4) REDEFININDO PERDIÇÃO
A raiva e a superioridade
Para se referir ao pecado e à salvação, Jesus muitas vezes emprega como metáforas as ideias de estar ?perdido? e ser ?achado?. O capítulo 15 de Lucas registra três parábolas que Jesus contou aos líderes religiosos. A primeira diz respeito a um pastor que percebe que uma de suas ovelhas havia se perdido. A segunda parábola conta a história de uma mulher que se dá conta de haver perdido uma de suas moedas. Como já vimos, a terceira parábola fala de dois filhos que, de diferentes maneiras, estão perdidos.
Lc 19:10
Na parábola, a condição de perdido do irmão mais novo fica evidente quando ele acaba se vendo no chiqueiro junto com os porcos. Por causa de seu comportamento insensato, indisciplinado e de autogratificação, ele fica sem amigos, sem dinheiro e sem recursos.
Observamos que o irmão mais velho ?ficou com raiva?. Todas as suas palavras estão recheadas de amargura. O primeiro sinal de que temos um espírito de irmão mais velho é este: quando nossa vida não é aquilo que nós queremos, não ficamos apenas tristes, mas também com muita raiva e cheios de amargura. Os irmãos mais velhos acham que, se levarem uma vida marcada pelas virtudes, serão felizes e se procurarem viver segundo os padrões estabelecidos, Deus lhes deverá um mar de rosas.
Eles vivem uma vida pautada pela moral não porque têm prazer nas virtudes em si, mas porque desejam controlar as circunstâncias da vida.
Os irmãos mais velhos baseiam sua autoimagem no trabalho árduo, na retidão moral ou no fato de serem membros de um grupo de elite, ou de se acharem extremamente inteligentes e espertos. Essa postura leva a um sentimento de superioridade em relação às pessoas que não têm as mesmas qualidades.
Se um grupo acredita que Deus os favorece em consequência de uma doutrina especial, por causa do culto que lhe oferecem e em virtude de certos comportamentos éticos, a postura que esse grupo assumirá diante dos que não têm essas qualidades pode ser hostil. Eles têm uma justiça própria que se esgueira sob a alegação de que estão apenas fazendo oposição aos inimigos de Deus. Quando olhamos para o mundo através dessas lentes, fica fácil justificar o ódio e a opressão perpetrados em nome da verdade.
A justiça própria dos irmãos mais velhos, além de dar origem ao racismo e ao preconceito de classe, cria no plano pessoal um espírito que julga e se nega a conceder perdão. O irmão mais velho da parábola não consegue perdoar o irmão mais novo porque este enfraqueceu a posição da família na sociedade, desonrou seu nome e dilapidou suas riquezas. Ele enfatiza que o irmão mais novo andava com ?prostitutas? enquanto ele vivia uma vida pura dentro de casa. ?Eu jamais chegaria a esse nível de maldade!?
A honestidade motivada pelo medo não tem condições de eliminar a causa básica do mal no mundo ? o profundo egoísmo do coração humano. Esse tipo de moralidade movida pelo medo apenas fortalece esse egoísmo, uma vez que, no final das contas, os irmãos mais velhos preocupam-se em viver segundo os princípios da moral única e exclusivamente para benefício próprio. Eles podem ser gentis para com o próximo e ajudar os pobres, mas no fundo fazem isso para que, dentro do viés religioso da espiritualidade de irmãos mais velhos, Deus os abençoe, ou para que, dentro do viés secular dessa mesma espiritualidade, possam se considerar virtuosos e generosos.
Os irmãos mais velhos podem até fazer o bem às pessoas, mas não porque tenham prazer no que fazem, nem por amor aos outros ou para agradar a Deus. A grande verdade é que não estão alimentando nem vestindo aos pobres, mas estão alimentando e vestindo a si mesmos.
Orações áridas
Irmãos mais velhos podem ser disciplinados no que diz respeito à oração, mas suas conversas com Deus estão destituídas de fascínio, maravilhamento, intimidade ou prazer. Pense em três pessoas diferentes: uma colega de trabalho de quem você não gosta, um amigo em cuja companhia gosta de estar e outra pessoa por quem esteja apaixonado e que também esteja apaixonada por você. Suas conversas com o colega de trabalho serão muito objetivas. Você não está interessado em conversinhas informais. Diante do seu amigo, talvez você abra o coração e fale de alguns problemas que está enfrentando. Mas com a pessoa que você ama sua tendência será falar daquilo que você acha bonito nela.
Esses três tipos de conversa equivalem às formas de oração que costumamos chamar de ?petição?, ?confissão? e ?adoração?. Quanto mais profundo for o relacionamento de amor, mais a conversa será pessoal e dirigida a afirmações e louvores. Irmãos mais velhos podem ser disciplinados e reservar períodos regulares dedicados à oração, mas o ato de orar será quase totalmente um discurso voltado para necessidades e pedidos, não para um louvor espontâneo e marcado por alegria.
Essa atitude revela que o principal objetivo da oração é controlar o ambiente em que vivem, em vez de se aprofundar num relacionamento íntimo com um Deus que os ama.
Quando observamos a postura do irmão mais velho na história, começamos a entender uma das razões que levaram o irmão mais novo a querer ir embora. Hoje há muita gente que desistiu de professar qualquer tipo de fé porque vê claramente que a maior parte das religiões está cheia de irmãos mais velhos. Essas pessoas chegaram à conclusão de que a religião é uma das grandes fontes de aflição e conflito neste mundo. E sabe mais o quê? Jesus deixa claro com essa parábola que elas estão certas. A raiva e a superioridade dos irmãos mais velhos, frutos de insegurança, medo e vazio interior, podem criar uma enorme corporação de pessoas movidas por culpa e medo, gente espiritualmente cega, o que constitui uma das grandes causas de injustiças sociais, violência e guerras.
5) O VERDADEIRO IRMÃO MAIS VELHO
De que precisamos para nos livrar das algemas de nosso estado de perdição específico, seja a perdição típica do irmão mais novo, seja a do irmão mais velho? Como a dinâmica do coração pode ser transformada, passando de uma realidade de medo e raiva para outra de alegria, amor e gratidão?
A primeira coisa de que necessitamos é da iniciativa do amor de Deus. Observe como o pai sai da casa e se dirige a cada um dos filhos, manifestando-lhes seu amor e esperando que entrem. Ele não espera o filho mais novo de pé na varanda de casa, impaciente e murmurando: ?Lá vem aquele meu filho. Depois do que fez, é bom que ele chegue se humilhando!?. Não há indício algum de uma postura como essa. Não; ele corre e o beija antes que o filho tenha oportunidade de confessar seu pecado. O que motiva o amor do pai não é o arrependimento, mas é a generosidade da afeição do pai que facilita a expressão de arrependimento do filho.
O pai vai para o lado de fora da casa e também dirige-se ao filho mais velho, que está com raiva e ressentido, e insiste para que ele entre e participe do banquete.
Ele não está sendo um fariseu para com os fariseus; não está sendo arrogante para com os arrogantes. Nós também não devemos agir assim. Ele tem amor não somente pelos que vivem uma vida dissoluta e extravagante, mas também pelos que levam uma vida segundo os rígidos ditames da religião.
O que fazer pra ser salvo?
Mas, então, o que precisamos fazer para ser salvos? Para chegar a Deus, precisamos nos arrepender do que fizemos de errado, mas se nos limitarmos a isso continuaremos na condição de irmãos mais velhos. Para passar por uma verdadeira conversão, precisamos nos arrepender também das razões pelas quais fazemos o que é certo. Os fariseus limitam-se a se arrepender de seus pecados, mas o cristão também se arrepende das próprias raízes de sua retidão. Precisamos aprender a nos arrepender do pecado que está por trás de todos os nossos outros pecados, mas também por trás de toda nossa retidão ? o pecado de tentarmos ser Senhor e Salvador de nós mesmos. Precisamos admitir que colocamos nossa fé e esperança em outros agentes e não em Deus; também é necessário admitir que, por meio do bem ou do mal que praticamos, estamos tentando nos esquivar de Deus ou manter controle sobre ele a fim de dispor sobre essas coisas.
As três parábolas (ovelha, moeda e filho)
Lucas 15.1-3 nos informa que são três as parábolas que Jesus contou aos fariseus que o estavam criticando por se confraternizar com pecadores, não apenas uma. A primeira é conhecida como a Parábola da Ovelha Perdida. Um homem cuida de um rebanho formado por cem ovelhas, mas uma delas se perde das demais. Em vez de aceitar a perda, o pastor sai à procura dela até encontrá-la. Então ele convida seus amigos e vizinhos, dizendo: ?Alegrem-se comigo, pois encontrei minha ovelha perdida? (v. 6).
A segunda parábola é conhecida como a Parábola da Moeda Perdida. É a história de uma mulher que tem dez moedas de prata em casa, mas perde uma delas. Ela não assume o prejuízo, mas ?acende uma lamparina e varre toda a casa procurando com todo cuidado até encontrá-la? (v. 8). Quando a encontra, chama seus amigos e vizinhos e lhes diz: ?Alegrem-se comigo, pois encontrei minha moeda perdida?. A terceira parábola é a história que estamos estudando, a Parábola dos Dois Filhos Perdidos.
As semelhanças entre as três histórias são óbvias. Em cada uma das parábolas, alguma coisa está perdida: uma ovelha, uma moeda, um filho. Em cada uma das histórias, a pessoa que sofre a perda acaba encontrando o que havia perdido. As três narrativas terminam com uma nota de alegria e celebração festivas com a recuperação do que estava perdido.
No entanto, há uma incrível diferença entre a terceira parábola e as outras duas. Nas duas primeiras, alguém ?sai? para fazer uma busca diligente do que se havia perdido. As personagens que saem para procurar não permitem que nada as demova de seu objetivo. Na terceira historia, quando vemos o drama vivido pelo filho que se perdeu, ficamos na expectativa de que alguém saia à procura dele. Mas ninguém sai. Isso nos deixa perplexos, mas era exatamente esse o objetivo de Jesus. Colocando as três parábolas tão perto uma da outra, Jesus está convidando seus ouvintes atentos a fazerem a seguinte pergunta: ?Quem deveria ter saído à procura do filho perdido??. Jesus conhecia toda a Bíblia e sabia que em suas primeiras páginas havia uma história sobre um irmão mais velho e um irmão mais novo ? Caim e Abel. Naquela história, Deus diz ao irmão mais velho, que estava tomado por ressentimento e orgulho: ?Você é o guardador do seu irmão?.
É isso que o irmão mais velho da parábola deveria ter feito; é isso que faria um verdadeiro irmão mais velho. Ele teria dito: ?Pai, meu irmão agiu como um louco e arruinou sua própria vida. Mas eu irei procurá-lo e o trarei de volta para casa. E se ele já tiver gastado toda a herança ? como acho que gastou ? arcarei com as despesas para trazê-lo de volta à nossa família?.
O primeiro ato da parábola nos mostra a gratuidade do perdão oferecido pelo pai, mas o segundo ato nos dá uma ideia de seu alto custo. A restauração do irmão mais novo não lhe custou nada, mas teve um custo enorme para o irmão mais velho. O pai não podia simplesmente perdoar o filho mais novo ? alguém tinha de pagar! O pai não poderia reintegrá-lo a não ser à expensa do irmão mais velho. Não havia outro jeito. Mas Jesus não apresenta um verdadeiro irmão mais velho na história, alguém disposto a pagar o preço necessário para buscar e salvar o que se havia perdido. Isso é de cortar o coração. Em vez de um verdadeiro irmão mais velho, o filho mais novo tem um irmão fariseu.
Todos nos rebelamos contra o pai, quer como irmãos mais velhos, quer como irmãos mais novos. Merecemos alienação, isolamento e rejeição. A mensagem que a parábola quer nos transmitir é que todo perdão acarreta um preço ? alguém tem de pagar. Só há um jeito de o irmão mais novo ser reintegrado à família: o irmão mais velho precisa arcar com o custo. Nosso verdadeiro irmão mais velho pagou nossa dívida sobre a cruz em nosso lugar.
Jamais deixaremos de ser irmãos mais velhos ou irmãos mais novos se não reconhecermos nossa necessidade, se pela fé não descansarmos e maravilhados não contemplarmos a obra de Jesus Cristo, nosso verdadeiro irmão mais velho.
CAPÍTULO 6: REDEFININDO ESPERANÇA
Se lermos a narrativa da perspectiva do tema do exílio e da volta para casa, tema que predomina em toda a Bíblia, entenderemos que Jesus nos apresenta mais do que um relato emocionante de redenção individual. Ele conta a história de toda raça humana e promete nada menos do que esperança para o mundo.
O autor que mais escreveu sobre essa ?saudade espiritual? foi C. S. Lewis em seu famoso sermão ?Peso de glória?. Referindo-se a muitas experiências semelhantes às de Steinbeck e Knowles, ele diz:
?Os livros ou a música nos quais achávamos estar a beleza haverão de nos trair se neles confiarmos; a beleza não estava neles, mas apenas foi veiculada por eles, e o que foi veiculado era o anseio. Essas coisas ? a beleza, a lembrança de nosso passado ? são boas imagens do que realmente desejamos; mas se forem confundidas com a beleza em si acabarão se transformando em ídolos mudos e desapontarão seus adoradores. Pois elas não são a realidade em si. [?] Despertamos agora para perceber [?] que fomos meros espectadores. A beleza sorriu, mas não para nos saudar; sua face estava voltada para nós, mas não para nos ver. Não fomos aceitos, acolhidos ou recebidos. [?]
Nossa eterna nostalgia, nosso anseio por reencontrar no universo alguma coisa da qual fomos separados, o desejo de estar do outro lado de uma porta que sempre contemplamos do lado de fora, isso não é uma fantasia neurótica, mas um indicador profundamente confiável de nossa verdadeira situação.?
Portanto, parece que em certo sentido somos parecidos com o irmão mais novo. Estamos todos no exílio e temos saudade de casa. Estamos sempre a caminho e nunca chegamos. As casas e famílias de que fazemos parte não passam de hospedarias ao longo do caminho, mas não são nosso lar. Este continua a se esquivar de nós.
No início do livro de Gênesis somos informados da razão por que todos nos sentimos como se estivéssemos no exílio e não de fato em casa. Lemos que fomos criados para viver no jardim de Deus. Aquele lugar era o mundo para o qual fomos projetados, onde não seríamos afastados do amor, onde não haveria decadência nem doença alguma. Tudo isso era possível porque se tratava de uma vida diante da face de Deus, em sua presença. Ali poderíamos adorá-lo, servir sua infinita majestade, conhecer sua beleza sem fim, desfrutá-la e refleti-la. Aquela era nossa terra natal, o país para o qual havíamos sido criados.
A Bíblia, porém, ensina que, assim como na parábola de Jesus, Deus era o ?pai?, o chefe daquela casa, e nós nos incomodamos de estar sob sua autoridade. Queríamos levar a vida sem a intromissão de Deus; por isso, saímos e dele nos alienamos, perdendo nossa casa pela mesma razão pela qual o irmão mais novo perdeu a dele. A consequência desse ato foi o exílio.
A Bíblia diz que, desde então, vagamos pelo mundo como exilados espirituais. Ou seja, vivemos em um mundo que não mais corresponde a nossos mais profundos anseios. Embora desejemos ter um corpo que ?corra e não se canse?, estamos sujeitos às doenças, ao envelhecimento e à morte.
Exílio
Esse tema aparece vez após vez na Bíblia. Depois do exílio de Adão e Eva, que saíram de uma casa superior a todas as outras, Caim, filho do primeiro casal, foi obrigado a vagar como nômade sobre a face da terra por ter assassinado seu irmão, Abel. Tempos depois, Jacó enganou o próprio pai e o irmão, e esteve em seu exílio durante anos. Depois disso, José, filho de Jacó, foi tirado de casa e levado para o Egito, seguido anos depois por seu pai Jacó e por toda a família, em consequência de um longo período de escassez de alimentos. Ali os israelitas foram transformados em escravos até que, sob a liderança de Moisés, voltaram para sua terra de origem. Séculos depois, Davi, antes de ser rei, viveu como um fugitivo perseguido. Por fim, toda a nação de Israel seguiu novamente para o exílio, levada em cativeiro para a Babilônia pelo rei Nabucodonosor.
Não é por acaso que o exílio é um elemento presente em todas essas histórias, uma após a outra. A mensagem da Bíblia é que a raça humana é um grupo de exilados tentando voltar para casa. A Parábola do Filho Pródigo é a história de cada um de nós.
A volta ao lar
Jesus não veio para simplesmente libertar uma nação que se encontrava sob opressão política, mas para nos salvar do pecado, do mal e da própria morte. Ele veio para conduzir a raça humana ao verdadeiro Lar. Portanto, não veio em força, mas em fraqueza. Ele veio e passou pela experiência do exílio que merecíamos. Foi obrigado a sair da presença do Pai, foi exilado para as trevas, o extremo desespero da alienação espiritual ? em nosso lugar. Levou sobre si a plena maldição da rebelião humana, o desabrigo cósmico, para que pudéssemos ser acolhidos em nosso verdadeiro lar.
Jesus não somente morreu, mas levantou-se do túmulo no terceiro dia. Ele destruiu o poder da morte (Hb 2.14): ?Mas Deus o levantou dos mortos, libertando-o da agonia da morte, pois à morte era impossível mantê-lo sob seu domínio? (At 2.24). Jesus pagou a penalidade por nossos pecados com sua morte e, por isso, alcançou vitória sobre as forças da morte, da decadência e do caos que impedem que o mundo seja verdadeiramente nossa casa. Um dia ele voltará para consolidar sua vitória. Isaías escreve:
O Deus de vocês virá [?] virá para os salvar. Então os olhos dos cegos serão abertos, e os ouvidos dos surdos, desimpedidos. O aleijado saltará como um cervo, e a língua do mudo gritará de alegria. Os resgatados do Senhor voltarão e entrarão cantando em Sião. Levarão sobre a cabeça uma coroa de alegria eterna. Serão tomados por alegria e júbilo, mas deles se apartarão a tristeza e o pranto (Is 35.4-6,10).
No fim da história dos filhos pródigos acontece um banquete para festejar a volta para casa. Nas últimas páginas do livro de Apocalipse, no desfecho da história, também acontece um banquete, a ?ceia do casamento do Cordeiro? (Ap 19).
Ao contrário do fundador de qualquer das grandes religiões, Jesus dá esperança para a vida humana comum. Nosso futuro não será uma forma de consciência etérea e impessoal. Não ficaremos flutuando no ar, mas comeremos, nos abraçaremos, cantaremos, riremos e dançaremos no reino de Deus, com tamanhos poder, glória e alegria que hoje não temos condições de imaginar.
Jesus transformará o mundo de novo em nossa casa perfeita. Jamais viveremos ?a leste do Éden?, sempre vagando e nunca chegando. Nós chegaremos, e o pai virá a nosso encontro, nos abraçará e seremos conduzidos para o banquete.
CAPÍTULO 7: O BANQUETE DO PAI
Nas profecias de Isaías acerca do novo céu e da nova terra, ele declara que, à semelhança de todas as voltas para casa, esta última será marcada por um grande banquete (Is 25). Jesus muitas vezes também compara a um banquete a salvação por ele realizada. ?Muitos virão do Oriente e do Ocidente?, diz ele a seus seguidores, ?e tomarão lugar no banquete com Abraão, Isaque e Jacó no reino do céu? (Mt 8.11). Como sinal de sua graça salvadora, ele instituiu uma refeição ? à qual nos referimos hoje como ceia do Senhor ou eucaristia. E, como não poderia deixar de ser, a parábola de Jesus sobre os filhos perdidos termina com um banquete festivo que representa o grande banquete de Deus no final da história.
Banquetes são ocasiões e lugares em que nosso apetite e nossos sentidos ? visão, olfato, audição e paladar ? são satisfeitos. Em João 2 lemos que Jesus estava participando de uma festa de casamento em que o vinho acabou muito antes da hora.
Por que esse ato foi o primeiro por ele realizado? Por que Jesus, a fim de explicar o que ele havia vindo fazer, decidiu transformar quase 600 litros de água em vinho de alta qualidade para que a festa não fosse interrompida?
A resposta é que Jesus veio para trazer alegria festiva. Ele é o verdadeiro ?mestre do banquete?, o anfitrião da festa. Como vimos, Jesus assumiu por nós a penalidade de nossos pecados. É por isso que os teólogos cristãos se referem ao aspecto legal da salvação efetuada por Jesus. Ele nos garante o veredito de ?inocentes?, de modo que deixamos de ser responsáveis por nossos erros.
?Há uma diferença entre crer que Deus é santo e gracioso e ter em nosso coração um novo senso do amor e da beleza dessa graça e santidade. A diferença entre crer e provar que Deus é gracioso é a mesma diferença entre ter uma certeza racional de que mel é doce e ter uma experiência sensorial de sua doçura.?
Jonathan Edwards
Essa realidade faz toda a diferença. Se você está tomado por culpa e vergonha, não basta crer no conceito abstrato da misericórdia de Deus. Você precisa sentir no palato do coração, por assim dizer, a doçura de sua misericórdia. Então você terá certeza de que é aceito. Se você está preocupado e ansioso, não é suficiente crer que Deus tem nas mãos o controle da história. Você precisa ver com os olhos do coração sua majestade radiante. Então você terá certeza de que ele está no controle.
A salvação é material
O livro de Gênesis relata que, ao criar este mundo, Deus contemplou sua criação física e viu que tudo era ?bom?. Deus ama o mundo material e se importa com ele. A ressurreição de Jesus e a promessa de um novo céu e uma nova terra são claros indícios de que ele ainda se importa com o mundo material. Este mundo não é simplesmente um palco onde indivíduos se convertem, um lugar que no fim será descartado, quando todos formos para o céu. Não, o supremo propósito de Jesus não se limita à salvação do indivíduo e ao perdão dos pecados, mas inclui também a restauração deste mundo, o fim das doenças, da pobreza, das injustiças, da violência, do sofrimento e da morte. O ponto culminante da história não é representado por uma forma superior de consciência desencarnada, mas por um banquete.
Se o mundo material fosse apenas uma ilusão, a exemplo do que afirmam algumas filosofias orientais, ou se não passasse de uma cópia da realidade, do mundo das ideias, como afirma Platão, então que importância haveria no que acontece aqui ou nesta vida? As únicas realidades que teriam importância seriam aquelas associadas à alma ou ao espírito. No entanto, Jesus não foi apenas salvo ?em espírito?, mas ressuscitou com um corpo físico. Deus criou corpo e alma e haverá de redimir não somente a alma, mas também o corpo. Todo o ministério de Jesus aponta para essa verdade. Jesus não se limitou a pregar a palavra, mas também curou os doentes, deu alimento aos que tinham fome e cuidou das necessidades dos pobres.
Deus não criou um mundo onde havia cegueira, lepra, fome e morte. Os milagres de Jesus eram sinais de que um dia toda essa degradação de sua criação será eliminada. Portanto, os cristãos podem falar da salvação da alma e se envolver no desenvolvimento de sistemas sociais que resultem em ruas menos violentas e lares mais acolhedores, sem que uma coisa exclua a outra. Com integridade.
Se os cristãos têm consciência disso, eles não podem assumir uma postura passiva diante da fome, das doenças e das injustiças. Karl Marx e outros acusaram a religião de ser ?o ópio do povo?. Ou seja, a religião é um sedativo que faz com que as pessoas fiquem passivas diante das injustiças, pois no céu tudo será lindo e maravilhoso.
O Cristianismo, porém, ensina que Deus abomina o sofrimento e a opressão presentes neste mundo material, tanto que se dispôs a intervir e lutar contra essas coisas. Se compreendido adequadamente, o cristianismo não é de modo algum o ópio do povo. Ele está mais para sais aromáticos.
A religião é individual
A religião funciona segundo o princípio do ?eu obedeço e, portanto, sou aceito por Deus?. Mas o princípio funcional básico do evangelho é outro: ?Sou aceito por Deus pela obra de Jesus Cristo ? portanto, eu obedeço?. Como já vimos, é crendo no evangelho que a pessoa começa a se relacionar com Deus. O evangelho nos dá um novo relacionamento com ele e uma nova identidade. No entanto, não devemos achar que nos basta crer para ficarmos quites com a mensagem do evangelho. Uma percepção fundamental de Martinho Lutero era que a ?religião? é o modo-padrão do coração humano. Seu computador funciona automaticamente no modo-padrão, a não ser que você lhe dê algum comando para fazer outra coisa. O que Lutero diz é que, mesmo depois de se converter ao evangelho, seu coração voltará a ser guiado por outros princípios, a menos que você deliberadamente continue a colocá-lo no modo-evangelho de funcionamento.
Não podemos passar por uma transformação mais permanente se não introjetarmos o evangelho mais profundamente em nosso intelecto e coração. É necessário que nos alimentemos do evangelho, digerindo-o e integrando-o a nosso ser. É assim que crescemos.
Como assim?
Por exemplo, você pode desejar ser mais generoso no uso do dinheiro. Essa mudança não acontecerá se você simples mente se forçar a ser generoso. Em vez disso, você deve pensar nas coisas que o estão impedindo de contribuir com mais liberalidade. Para muitas pessoas, ter dinheiro é um meio de obter aprovação e respeito dos outros, um modo de sentir que estamos no controle de nossa vida. O dinheiro acaba sendo não um simples objeto, mas algo em que nosso coração deposita fé e esperança.
É possível que você também queira fortalecer seu casamento. Em Efésios 5, Paulo está se dirigindo aos cônjuges, mas em especial aos maridos. Muitos leitores de Paulo eram influenciados pelas posturas pagãs anteriores à conversão e isso se refletia no casamento.
Por isso, Paulo deseja encorajar os maridos a não serem apenas sexualmente fiéis, mas também a tratar a esposa com carinho, honrá-la e ajudá-la a crescer tanto de uma perspectiva pessoal quanto espiritual.
A solução para a avareza está em um redirecionamento do olhar para a generosidade de Cristo no evangelho, em que ele abriu mão de sua riqueza por amor a nós. Você não precisa se preocupar com dinheiro, pois a cruz é prova do cuidado de Deus por você e lhe dá toda a segurança necessária.
A solução para um casamento problemático está em um redirecionamento do olhar para o profundo amor conjugal de Cristo no evangelho. ?Não adulterarás? (Êx 20.14) é um mandamento que faz sentido no contexto do amor conjugal de Jesus, especialmente na cruz, onde ele nos deu prova de sua plena fidelidade. Somente quando conhecer o amor conjugal de Cristo é que você terá condições de lutar contra a sensualidade.
Sobre a graça de Deus
O que tudo isso significa? O que faz de você uma pessoa fiel ou generosa não é simplesmente um esforço redobrado para obedecer às normas morais. Toda mudança vem de uma compreensão mais profunda da salvação de Cristo e da experiência derivada das mudanças que tal compreensão produz no coração.
Já ouvi as pessoas fazendo a seguinte objeção: ?Espera aí! Você está dizendo que, para crescer em Cristo, eu preciso ficar repetindo para mim mesmo que sou aceito e amado pela graça?
Mas, se eliminarmos esse temor e ficarmos falando só em livre graça e aceitação não meritória, que motivação teremos para viver uma vida correta?
Se perder o medo de ser punido foi a causa de o indivíduo perder o incentivo para viver uma vida de obediência, qual era sua real motivação? Só podia ser o medo. Mas que outro incentivo haveria? Um amor movido por reverência e gratidão.
Ao longo dos anos tenho ouvido muita gente me dizer: ?Bem, se eu acreditar que fui salvo unicamente pela graça e não por causa das boas obras que pratico, poderei levar a vida do jeito que eu quiser!?. Mas esse tipo de raciocínio considera que a parábola de Jesus contém somente o primeiro ato, não o segundo. A graça de Deus é gratuita sim, mas ela tem um preço infinitamente alto. Dietrich Bonhoeffer impressionava-se com o número de pessoas da igreja alemã que haviam capitulado a Hitler no início da década de 1930; ele reagiu a isso escrevendo sua grande obra The cost of discipleship.3 Nesse livro, ele advertiu contra o perigo daquilo que chamava de ?graça barata?, o ensino que dá ênfase apenas à livre graça, sem se importar de fato com o modo de vivermos. Ele afirma que a solução não está em uma volta ao legalismo, mas na seriedade com que Deus lida com o pecado, de modo que ele não nos poderia salvar a não ser pagando ele mesmo um preço muito alto. A compreensão dessa verdade haverá de reconfigurar profundamente nossa vida. Não teremos capacidade para viver com egoísmo e covardia. Mas defenderemos a justiça e nos sacrificaremos por nosso próximo. E não nos preocuparemos com o preço de seguir Cristo quando compararmos isso com o preço que ele pagou para nos resgatar.
Bonhoeffer enfatizava que aqueles cuja vida não foi transformada pela graça de Deus não entendem seu alto preço e, portanto, não entendem o evangelho. Essas pessoas têm uma ideia geral do amor universal de Deus, mas não o verdadeiro conhecimento da seriedade do pecado e do significado da obra que Cristo realizou em nosso lugar.
Se dizemos ?eu creio em Jesus?, mas essa fé não afeta o modo em que levamos a vida, a solução não está em acrescentar trabalho árduo à nossa fé; o que acontece é que, na verdade, jamais cremos em Jesus nem o entendemos.
A salvação é comunitária
Vivemos em uma cultura na qual os interesses e desejos do indivíduo estão acima dos interesses e desejos da família, do grupo ou da comunidade. Por consequência, uma grande porcentagem de pessoas quer crescer espiritualmente sem ficar dependente de igrejas ou instituições.
Já expliquei neste livro por que as igrejas ? e todas as instituições religiosas ? costumam ser tão desagradáveis. Elas estão infestadas de irmãos mais velhos. Mas a estratégia de nos afastarmos da igreja porque elas têm irmãos mais velhos não passa de outra forma de farisaísmo. Além disso, não há como crescer espiritualmente se você não estiver profundamente envolvido em uma comunidade que crê em Jesus. Não há como viver a vida cristã longe de um grupo de amigos da mesma fé, sem uma família de crentes da qual você faça parte.
Em cada um de meus amigos há algo que somente o outro pode trazer à plena luz. Sozinho não sou totalmente capaz de chamar à ação o homem por inteiro; preciso de outras luzes além da minha para revelar todas as suas facetas. Agora que Charles [Williams] morreu, jamais verei de novo a reação de Ronald [Tolkien] a uma piada contada por Charles. Em vez de ter mais de Ronald, mais dele ?para mim?, agora que Charles se foi, eu tenho menos de Ronald [?] Nesse sentido, a Amizade tem uma gloriosa ?proximidade por semelhança? ao próprio céu, onde é justamente a multidão dos benditos (que ninguém tem condições de contar) que aumenta a fruição que cada um de nós tem de Deus. Pois cada alma, vendo Deus a seu próprio modo, sem dúvida transmite sua visão singular para todas as outras. Por isso, diz um antigo escritor, os serafins na visão de Isaías clamam uns aos outros: ?Santo, Santo, Santo? (Is 6.3). Quanto mais repartirmos entre nós o Pão Celestial, mais Pão teremos.
C.S. Lewis em Amizade (Quatro Amores)