Vozes Anoitecidas

Vozes Anoitecidas Mia Couto




Resenhas - Vozes Anoitecidas


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Carina 11/09/2013

Tradição e poesia pedem a palavra
Primeiro livro em prosa de Mia, este volume já revela a essência de “estorinhador” de um dos maiores escritores africanos. Orgulhosamente africano, como mostram seus contos que tanto valorizam a tradição, a oralidade, o poder de contar histórias do povo moçambicano.

A epígrafe do livro, que faz uma reflexão sobre a miséria material dos homens, diz muito do espírito da obra, repleta de protagonistas humildes e reféns, em muitos casos, de sua própria pobreza.

Contos do livro:

- A fogueira – Marido pede que a mulher faça a própria cova enquanto está viva, pois ele não tem forças para tanto e preocupa-se com seu enterro;
- O último aviso do corvo falador – Homem possui um corvo que fala com os mortos e dá assistência àqueles que querem se comunicar com o além;
- O dia em que explodiu Mabata-bata – Um boi pisa em uma mina e explode; assustado, o menino pastor decide fugir;
- Os pássaros de Deus – Pescador pobre encontra um passarinho em seu barco e acredita que deve cuidar muito bem do animal, que é um emissário dos deuses;
- De como se vazou a vida de Ascolino do Perpétuo Socorro – Dono de uma venda cumpre todo dia o mesmo ritual de bebedeira, sempre seguido por seu empregado, até que um dia a mulher lhe abandona;
- Afinal, Carlota Gentina não chegou de voar? – Confissão de homem que matou a esposa com um balde de água quente, acreditando que ela era feiticeira;
- Sade, o Lata de Água – Homem arma gritaria para os vizinhos pensarem que está espancando a mulher, quando esta, na verdade, já lhe abandonou há muito tempo;
- As baleias de Quissico – Homem se muda em busca de uma baleia mágica que distribui presentes a quem lhe encontrar;
- De como o velho Jossias foi salvo das águas – Jossias cai em um poço, após haver furtado a oferenda para os antepassados e é salvo a contragosto;
- A história dos aparecidos – 2 homens considerados mortos ressurgem após uma cheia e são considerados espíritos pela comunidade, que não lhes quer aceitar novamente como entes vivos;
- A menina de futuro torcido – Segue abaixo (um dos melhores contos de Mia);
- Patanhoca, o cobreiro apaixonado – Homem que cuidava de cobras se apaixona por uma chinesa, a qual mata.

Trechos:

A vida dele estava toda ali, repartida nas costelas que subiam e desciam. Neste deserto solitário, a morte um simples deslizar, um recolher de asas. Não um rasgão violento como nos lugares onde a vida brilha.
***
Estava ali a vida a continuar-se, grávida de promessas.
***
Eu somos tristes. Não me engano, digo bem. Ou talvez: nós sou triste? Porque dentro de mim, não sou sozinho. Sou muitos. E esses todos disputam minha única vida. Vamos tendo nossas mortes. Mas parto foi só um.
***
As vitórias são só derrotas adiadas.
***
Descompletos somos, enterrados terminamos.
***
A mentira da noite é matar o cansaço dos homens, pensou enquanto fechava os olhos.
***
Um homem que abandona um sítio porque foi derrotado, esse homem já não vive. Não tem mais lugar para começar.
***
Caju é sangue do sol pendurado, doce fogo de bebermos.
***
A menina de futuro torcido

Joseldo Bastante, mecânico da pequena vila, punha nos ouvidos a solução da sua vida. Viajante que passava, carro que parava, ele aproximava e capturava as conversas. Foi assim que chegou de ouvir um destino para sua filha mais velha, Filomeninha. Durante toda uma semana, chegavam da cidade notícias de um jovem que fazia sucesso virando e revirando o corpo, igual uma cobra. O rapaz tinha sido contratado por um empresário para exibir suas habilidades, confundir o trás para a frente. Percorria as terras e o povo corria para lhe ver. Assim, o jovem ganhou dinheiro até encher caixas, malas e panelas. Só devido das dobragens e enrolamentos da espinha e seus anexos. O contorcionista era citado e recitado pelos camionistas e cada um aumentava uma volta nas vantagens elásticas do rapaz. Chegaram mesmo a dizer que, numa exibição, ele se amarrou no próprio corpo como se fosse um cinto. Foi preciso o empresário ajudar a desatar o nó; não fosse isso, ainda hoje o rapaz estaria cintado.
Joseldo pensou na sua vida, seus doze filhos. Onde encontraria futuro para lhes distribuir? Doze futuros, onde? E assim tomou a decisão: Filomeninha havia de ser contorcionista, apresentada e noticiada pelas estradas de muito longe. Ordenou filha:
- A partir desse momento, vais treinar curvar-te, tevar a cabeça até no chão e vice-versa.
A pequena iniciou as ginásticas. Evoluía lentamente para o gosto do pai. Para acelerar os preparos, Joseldo Bastante trouxe da oficina um daqueles enormes bidões de gasolina. A noite amarrava a filha ao bidão para que as costas dela ficassem noivas da curva do recipiente. De manhã, regava-a com água quente quando ela ainda estava a despertar:
- Essa água é para os seus ossos ficarem moles, daptáveis.
Quando a retiravam das cordas, a menina estava toda torcida para trás, o sangue articulado, ossos desencontrados. Queixava-se de dores e sofria de tonturas.
- Você não pode querer a riqueza sem os sacrifícios - respondia o pai.
Filomeninha amarrotava a olhos vistos. Parecia um gancho já sem uso, um trapo deixado.
- Pai, estou a sentir muitas dores cá dentro. Deixa-me dormir na esteira.
- Nada, filhinha. Quando você for rica hás-de dormir até de colchão. Aqui em casa todos vamos deitar bem, cada qual no colchão dele. Vai ver que só acordamos na parte da tarde, depois dos morcegos despegarem.
Os tempos passaram, Joseldo sempre esperando que o empresário passasse pela vila. Na garagem os seus ouvidos eram antenas à procura de notícias do contratador. Nos jornais os olhos farejavam pistas do seu salvador. Em vão. O empresário recolhia riquezas em lugar desconhecido.
Enquanto isso, Filomena piorava. Quase não andava. Começou a sofrer de vómitos. Parecia que queria deitar o corpo pela boca. O pai avisou-lhe que deixasse essas fraquezas:
- Se o empresário chegar não pode-lhe encontrar da maneira como assim. Você deve ser contorcionista e não vomitista.
Decorreram as semanas, destiladas na angústia de Joseldo Bastante. Numa terra tão pequena só se passa o que passa. O acontecimento nunca é indígena. Chega sempre de fora, sacode as almas, incendeia o tempo e, depois, retira-se. Vai-se embora tão depressa que nem deixa cinza para os habitantes reacenderem aquele fogo, se gostarem. O mundo tem sítios onde pára e descansa a sua rotação milenar. Aquele era um desses lugares.
O tempo foi-se enchendo de nadas até que, uma tarde, Joseldo escutou de um camionista a chegada do destino: o empresário estava na cidade preparando um espectáculo.
O mecânico abandonou o serviço e rapidou para sua casa. Disse à mulher:
- Veste Filomeninha com seu vestido novo!
A mulher estranhou:
- Mas essa menina não tem vestido novo.
- Estou a falar o seu próprio vestido. O seu, mulher.
Puseram a menina de pé e meteram-lhe o vestido da mãe. Largo e comprido, via-se que as medidas não condiziam.
- Tira o leno. Artistas não usam panos na cabeça. Mulher: trança lá o cabelo dela, enquanto vou arranjar dinheiro da passagem do comboio.
- Vai onde arranjar o tal dinheiro?
- Não é seu assunto.
- Joseldo?
- Não me chateia mulher.


Horas depois partiam para a cidade. No comboio, o mecânico satisfez-se de pensamentos: um fruto não se colhe só pressas. Leva seu tempo, de verde-amargo até maduro-doce. Se tivesse procurado a solução, como outros queriam, teria perdido esta saída. Orgulhoso, respondia aos apressados: esperar não é a mesma coisa que ficar à espera.
No embalo dos carris seguia Joseldo Bastante a entregar sua pequena filha à sorte das estrelas, à fortuna dos imortais. Olhou a menina e viu que ela estremecia. Perguntou-lhe. Filomeninha queixou-se do frio.
- Qual frio? Com todo esse calor, onde está o frio?
E procurou o frio como se a temperatura tivesse corpo e lhe tocasse num arrepio dos olhos.
- Deixa, filhinha. Quando começar entrar fumo, isto já vai aquecer.
Mas as tremuras da menina aumentavam sempre até serem mais que o balanço do comboio. Nem o vestido largo escondia os estremeções. O pai tirou o casaco e colocou-o sobre os ombros de Filomena.
- Agora veja se pára de tremer que ainda me descose o casaco todo.
Chegaram à cidade e começaram a procurar o escritório do empresário. Seguiram por ruas sem fim.
- Charra, filha, tantas esquinas! E todas são iguais.
O mecânico arrastava a filha, tropeçando nela.
- Filomena, fica direita. Hão-de dizer que lhe levo até no hospital.
Por fim, deram com a casa. Entraram e foram mandados esperar numa pequena sala. Filomeninha adormeceu-se na cadeira, enquanto o pai se entretinha com sonhos de riqueza.
O empresário recebeu-os só no fim do dia. Respondeu sem muitos quês.
- Não me interessa.
- Mas, senhor empresário...
- Não vale a pena perder tempo. Não quero. O contorcionismo já está visto, não provoca sensação.
- Não provoca? Veja lá a minha filha que chega com a cabeça...
- Já disse, não quero. Essa menina está doente.
- Essa menina? Essa menina tem saúde do ferro, aliás de borracha. Só está cansada da viagem, só mais nada.
- A única coisa que me interessa agora são esses tipos com dentes de aço. Umas dessas dentaduras que vocês às vezes têm, capazes de roer madeira e mastigar pregos.
O Joseldo sorriu, envergonhado, e desculpou-se de não poder servir:
- Sou mecânico, mais nada. Parafusos mexo com a mão, não com os dentes.
Despediram-se. O empresário ficou sentado na grande cadeira achando graça aquela menina tão magra dentro de vestido alheio.
No regresso Joseldo ralhava com o destino. Dentes, agora são dentes! A seu lado, Filomena arrastava-se, trocando os passos. Entraram no comboio e esperaram a arrancada do regresso. O pai foi acalmando. Parecia olhar o movimento da estação mas os seus olhos não passavam além do vidro fosco da janela. De súbito, um brilho acendeu-lhe o rosto. Segurando a mão da filha, perguntou, sem a olhar:
- É verdade, Filomena: você tem dentes fortes! Não é isso que diz a sua mãe?
E como não tivesse resposta, abanou o braço da criança. Foi então que o corpo de Filomeninha tombou, torcido e sem peso, no colo de seu pai.
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Viviane 25/12/2009

Desanoitecendo sentimentos
Este foi meu primeiro contato com Mia Couto e me descobri atingida por seu estilo e escolhas. A vida de cada personagem se apresenta envolvida pela cultura moçambicana com uma consciência muito particular, às vezes movida por objetivos irreais, às vezes por uma resignação comovente.
Minha impressão foi a de que as palavras eram, ao mesmo tempo, muito cruas e poéticas e, por conta disso, os sentimentos suscitados também se apresentavam assim. Bom modo de ter acesso a um mundo tão distante da maioria de nós.
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